Direitos humanos

Democracia e solidariedade contra o crescimento do Estado policial

Parlamentares e movimentos lançam observatório e se organizam para defender Estado social. 'Movimentos históricos são irreversíveis', diz Vannuchi, enquanto Pedro Serrano vê autoritarismo sem ditador

Reprodução Youtube/TV Alesp

Vannuchi na Assembleia, durante ato pelos direitos humanos: contra “Estado policial com as formalidades de uma democracia”

São Paulo – Além dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, completados segunda-feira (10) e dos 50 anos do AI-5, nesta quinta (13), também se lembrou das três décadas da Constituição brasileira, em evento na Assembleia Legislativa de São Paulo sobre direitos – ampliados e agora ameaçados –, Estado social e Estado policial. “A violência não está esperando o 1º de janeiro (data da posse do novo governo)”, lembrou o ex-ministro Paulo Vannuchi, sem admitir espaço para desânimo ou derrotismo. “Os movimentos históricos são irreversíveis. Eles enfrentam, sim, ciclos”, afirmou, depois de uma digressão sobre os avanços e tropeços da democracia no Brasil.

Ainda sob a emoção da notícia da morte de Annie Genevois, filha da ativista Margarida Genevois, o ex-ministro falou de ameaças recentes ao padre Júlio Lancelotti e do assassinato da vereadora Marielle Franco. “Os assassinos estão incrustrados na máquina de governo.” Ele destacou que, na diplomação de Jair Bolsonaro como presidente, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber discursou em defesa dos direitos humanos. “Esperamos que o Supremo volta a essa rota de correção de rumos”, acrescentou, defendendo o combate ao “Estado policial com as formalidades de uma democracia”.

O evento na Assembleia, na manhã de hoje, marcou também o lançamento de campanha pela criação do Observatório Paulista de Defesa dos Direitos Humanos, iniciativa das bancadas de PCdoB, Psol e PT, mas que pretende trabalhar em colaboração com outras instituições. Vannuchi falou ainda sobre a criação da Comissão Arns de Direitos Humanos, em referência ao cardeal Paulo Evaristo Arns. Entre os participantes, estão a própria Margarida Genevois, José Gregori, Paulo Sérgio Pinheiro, Vladimir Safatle, Laura Greenhalg e André Singer. O ex-ministrou destacou ainda outras iniciativas que vem surgindo, como o Instituto Novos Paradigmas, criado por Tarso Genro.

Ele discorda de quem diz que Bolsonaro “veio para ficar”, no sentido da longevidade de suas ações, mas lembra do perigo que o futuro presidente representa. “Ele é desprovido de qualquer legitimidade democrática. Está dando um show de movimentos erráticos. Dessa fragilidade é que virão os ataques.” 

Vannuchi citou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se tivesse o direito de disputar a eleição teria vencido no primeiro turno e a partir de 1º de janeiro iniciaria “um processo de retomada do diálogo democrático”.

Valores mínimos

A democracia foi instrumento contra a própria democracia, analisou o jurista e professor Pedro Serrano, ao tratar de ascensão do nazifascismo e do estabelecimento de direitos sociais e civis como medida civilizatória. “Os Estados não podem, no exercício de sua soberania, agredir valores mínimos de ética, de moralidade política. Decisões políticas passam a ter condicionamentos”, afirmou, para emenda com a crise que atingiu esse “pacto humanístico” desenvolvido no pós-guerra, que entrou em crise nos anos 1970 pelo mundo e especialmente em 1990 no Brasil. 

“Jovens, negros, pobres sempre foram mortos, mas nunca com tanta intensidade. Hoje somos o país que mais mata em termos absolutos, temos a polícia que mais mata e mais morre. Nossas taxas de violência são superiores a países tão desiguais quanto nós”, observou Serrano, que identifica na violência – assassinatos e prisões arbitrárias – uma forma de controle social. Ou algo que ele chamou de “autoritarismo líquido”, sem necessidade da figura de um ditador ou tanques na rua, com aparência de cumprimento da Constituição, mas com “conteúdo tirânico”.

“O autoritarismo não começa agora com Bolsonaro. Ele é apenas a cereja do bolo. Eu diria que podemos esperar não ditadura, mas o adensamento de políticas de exceção”, disse o jurista. Um processo mais cirúrgico, fragmentado e às vezes de difícil identificação, inclusive com participação do sistema de justiça. “Não vão conseguir restaurar a Idade Média, mas vão fazer muita gente sofrer. Todos esses movimentos sociais ‘indesejáveis’ serão vítimas de medidas de exceção. Temos de reformar nossa concepção de democracia e de direitos humanos”, acrescentou, vendo pelo menos um aspecto positivo em um cenário tão adverso: “Talvez seja a chance de a gente se unir novamente”.

Segundo ele, o fascismo se desenvolve por “dialogar com o senso comum e oferecer soluções de senso comum”: por exemplo, se há algum problema, basta prender e matar. É preciso, sim, combater o crime organizado e discutir políticas de segurança, mas com racionalidade.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi uma “carta-compromisso contra atrocidades”, definiu Renata Rosa, da União de Negras e Negros Pela Igualdade (Unegro). “Ainda há quem morra de fome, sede e desnutrição no nosso país e no mundo”, afirmou, lamentando a existência de um “sistema desumanizado em que o instrumento é o lucro”. No Brasil atual, o pacto democrático foi rompido e o presidente eleito ataca sistematicamente os direitos humanos como parte de um programa.

Observatório

A líder do PT na Assembleia, deputada Beth Sahão, lembrou que o observatório se originou de uma ideia de organizar um trabalho voltado à população de rua e se ampliou para uma concepção mais geral de direitos humanos. “Estamos todos temerosos em relação a tudo que pode acontecer com esses segmentos mais fragilizados da sociedade brasileira”, lembrou. Ainda nesta quinta, parlamentares iriam se reunir com o presidente da Casa, Cauê Macris (PSDB), para pedir apoio à iniciativa.

Para o líder do Psol, Carlos Giannazi, o dia de hoje serve para “descomemorar” o que ele chamou de “aberração jurídica”, referindo-se ao AI-5, “que potencializou ainda mais as perseguições” não só à oposição à ditadura, mas a todos aqueles que tinham pensamento crítico. 

Pelo PCdoB, Gustavo Petta lamentou que a diplomação do presidente tenha ocorrido justamente no dia da Declaração Universal, por se tratar “de um sujeito que tem na sua história ataques a todos os direitos”. Segundo ele, muitos temas que foram sendo superados com a redemocratização “voltam a ser pauta”. Ele criticou também o governador paulista eleito, João Doria (PSDB): “É difícil saber quem violará mais os direitos humanos a partir de sua posse”.