Entrevista

Brasil está se tornando ‘laboratório grotesco de experiências antidemocráticas’

Para sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, modelo da 'geringonça portuguesa' mostra que 'o neoliberalismo é uma mentira'

Marcelo Camargo/Agência Brasil

“Tem sido uma tragédia que o Ocidente, sobretudo, só olhe para o conhecimento científico e despreze os outros conhecimentos”

São Paulo – Na segunda parte da entrevista com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (confira aqui a primeira parte), ele fala a respeito da decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU de assegurar ao ex-presidente Lula sua candidatura, antes da decisão do TSE denegar seu registro. Para Boaventura, o fato de a Justiça nacional ainda não ter acatado a determinação, àquela altura, representava que o “sistema judiciário brasileiro se encontra em um estado de estresse institucional e neste momento ele pensa que tem legitimidade para poder falar em nome do sistema político”.

O sociólogo falou também sobre seu conceito de epistemicídio, a respeito de “como a ciência moderna deixou de legitimar qualquer outra forma de conhecimento e sabedoria”, como se todos os outros saberes que não o dito científico fosse ignorância. “Hoje evoca-se a ideia de uma ciência neutra, como uma escola sem partido, uma ciência sem política, quando a ciência sem política é a mais política de todas.”

Confira abaixo a segunda parte da entrevista:

Determinação do Comitê de Direitos Humanos da ONU

O sistema judiciário brasileiro se encontra em um estado de estresse institucional e neste momento ele pensa que tem legitimidade para poder falar em nome do sistema político, quando é o único órgão de soberania que não foi eleito diretamente pelo povo. Portanto, é o que tem menos legitimidade democrática. E é por isso que praticamente em todas as democracias têm sempre um poder relativamente limitado.

Isso foi muito mal interpretado, sobretudo porque é um comitê com muita estima internacional, o Comitê de Direitos Humanos e, portanto, o que ele disse que é fundamental é que qualquer golpe que agrave a situação democrática no Brasil será hostilizado pela comunidade internacional. Mas, ao meu entender, as normas pelas quais foram interiorizadas, transmitidas, transplantadas para dentro do sistema ordinário brasileiro deviam ter sido e ser cumpridas. Obviamente não é a primeira vez. O Brasil não tem uma grande tradição de respeitar a legislação internacional. Nos próprios governos do PT nem sempre foram respeitadas, como se viu na decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre Belo Monte, quando não reagiram da melhor maneira à legislação internacional que estava em causa. Mas são esses princípios fundamentais que nos regem.

O Brasil, de  um grande modelo, laboratório de experiências esperançosas, está transformando-se em um laboratório grotesco de experiências antidemocráticas em aparente normalidade democrática. Ninguém nunca entende se é uma república de bananas ou república governada do exterior ou se quem está no interior perdeu o norte completamente – ou perdeu o sul, se quiser –, perdeu realmente uma orientação mínima para poder conduzir o país. 

Epistemicídio, o desprezo por outros saberes

No que diz respeito ao epistemicídio, é um conceito que comecei a utilizar para caracterizar o modo como a ciência moderna deixou de legitimar qualquer outra forma de conhecimento e sabedoria que exista nas comunidades, nas cidades e nos campos, com a única ideia de que só há um conhecimento rigoroso, o conhecimento científico, e todo o resto é ignorância.

Sou um cientista social, obviamente valorizo a ciência, mas tenho a consciência de que a ciência não é o único conhecimento válido. É um dos conhecimentos muito importantes e muitas vezes ela ganha mais se articulada com os conhecimentos não científicos, populares, com sabedorias, do que propriamente se não fizer isso, constituindo o que é o contrário do epistemícidio, a ecologia de saberes, articular o saber científico com outros saberes.

É que o vi no Fórum Social Mundial, onde houve desenvolvimento do conhecimento científico com as lutas sociais. Estou muito envolvido no Brasil na luta contra os agrotóxicos, uma das mais interessantes pela combinação do conhecimento científico e do conhecimento popular, por exemplo, dos agricultores do nordeste brasileiro que vivem em seu cotidiano a pulverização aérea e o que ela traz para os pulmões e para as suas malformações nas suas comunidades. Os cânceres têm incidência superior à de São Paulo, apesar de estarmos em uma zona rural. Portanto, eles sabem isso diretamente e sabem articular isso muito bem, e esse conhecimento é integrado ao conhecimento científico de uma organização notável que é a Abrasco.

Tem sido uma tragédia que o Ocidente, sobretudo, só olhe para o conhecimento científico e despreze os outros conhecimentos por considerá-los ignorantes. É por isso que se destrói muita sabedoria camponesa, sendo que 75% da biodiversidade da natureza está nas mãos dos indígenas, enquanto nós continuamos a matar e destruir a biodiversidade quando ela é absolutamente essencial para a sobrevivência do planeta. A revolução científica da agricultura na Índia destruiu milhares de sementes para agora os indianos dependerem de pouquíssimas sementes, muitas fornecidas pela Monsanto e estão tentando recuperar seu passado e o conhecimento ancestral. Porque nós temos que destruir o conhecimento para depois recuperá-lo? É estúpido politicamente.

A ciência a serviço do capital

Isso tudo tem a ver com a fato de que a ciência, extremamente rica na sua origem, e com o momento em que ela se transformou em uma força produtiva do capitalismo. Entrou muito nisso e foi cúmplice de todas essas mudanças que estamos assistindo. Isso tem a ver também com um conhecimento orientado para o futuro, a sabedoria ancestral vem do passado mas tem uma ideia de futuro assente nesse passado. A ciência está sempre à espera da próxima descoberta e isso contribuiu bastante para que nós esquecêssemos o passado.

Aliás, isso é muito trágico na América Latina, que está a ser estudado, a cada 30 anos, há quem diga 20, países como o Brasil e a Argentina esquecem daquele período, esquecem tudo o que fizeram nos últimos anos e praticamente querem voltar ao passado. E praticamente, voltam ou correm o risco de voltar ao passado. É um ciclo infernal, porque se olhar para os 20 anos anteriores, tem-se a mesma coisa, tem desde 1964. Aqui é realmente um processo, que, ao meu entender, não é uma fatalidade, não tem nada a ver com os brasileiros ou que sejam menos visionários que os outros. Tem a ver com o sistema de dominação que está instaurado, sobretudo, capitalista internacional em que este país continua muito dependente e integrado. E sempre que quis criar alguma capacidade de autonomia, como foram os Brics, é fortemente punido por isso.

O extrativismo do tempo

Portanto, o capitalismo tem aquilo que chamo de último extrativismo, o extrativismo temporal. Isto é, nós transformamos, em um século, o tempo em falta de tempo, ninguém tem tempo para nada hoje e como a gente fez isso? A gente fez isso por meio de uma concessão de produtividade que não tinha nada a ver com qualidade de vida, mas com quantificação da vida nos PIBs e em outras formas quantitativas e, agora, nos rankings da produção científica. Todos somos mercantilizados, há uma mercantilização das universidades neste momento, com a precarização dos professores e pesquisadores. É um processo de reduzir ao mercado e à lei do valor todos os aspectos da vida e isso é que nós temos.

Penso que uma economia de mercado é perfeitamente legítima, desde que o mercado não seja tudo e possa haver outras economias como as camponesas, cooperativas. Uma economia de mercado é legítima, uma sociedade de mercado é repugnante. Uma sociedade onde tudo se compra e tudo se vende é uma sociedade moralmente e eticamente repugnante e é isso que nós temos que evitar. Só com um trabalho democrático podemos fazer uma sociedade democrática. Hoje evoca-se a ideia de uma ciência neutra, como uma escola sem partido, uma ciência sem política, quando a ciência sem política é a mais política de todas.

A diversidade das experiências democráticas

Uma das coisas que temos que fazer é capitalizar um pouco de tudo aquilo o que se fez. Acabo de publicar aqui no Brasil para a Editora Autêntica, um livro chamando Demodiversidade, um livro coletivo que dirigi com uma grande equipe. É um projeto financiado pela União Europeia para vermos a diversidade das experiências democráticas pelo o mundo, mantendo a memória de tudo aquilo que já foi feito e em alguns lugares têm sido feito, em países como a Índia, a África do Sul, Moçambique etc. No próprio Brasil temos experiências muito interessantes que estão incluídas no livro.

Acho que manter a memória de tudo isso é muito importante, para olhar para o futuro porque estamos em uma onda, em um ciclo reacionário, de crises, de acumulação do capital, onde a democracia só existe se for completamente dominada pela lógica do capital. Não pode haver saúde pública, educação pública, não pode haver nada, tudo tem que ser privatizado, se mantiverem isso lógico que vai haver uma resistência.

A luz da geringonça portuguesa

A geringonça portuguesa é uma boa solução, que tenho apoiado desde o início e dá o exemplo de como as chamadas esquerdas, na sua pluralidade, podem realmente se unir. Unir por objetivos muito concretos e pragmáticos, sem ninguém vender a alma, porque é tudo assente em acordos muito bem delimitados, ponto por ponto. Tudo foi negociado, é uma grande vitória para que os comunistas não continuem a pensar que os socialistas eram os seus grandes inimigos, o inimigo eram os capitalistas ou a classe dominante e não o partido socialista.

Portugal tem uma coisa inédita que nesse momento é realmente notável, no meu entender, o fato de fazer tudo contrário às receitas do neoliberalismo, as privatizações, os cortes dos salários, a privatização da segurança social. Fez o contrário disso tudo, parou as privatizações, começou a reconstruir os salários mais baixos, as próprias pensões mais baixas e começou a ter resultados que o neoliberalismo diz que faz, mas que nunca faz, como crescer economia. A economia portuguesa está crescendo, o desemprego está neste momento ao nível de 1990, nunca foi tão baixo, e a imagem do país é extremamente positiva. Tem entrado investimentos estrangeiros, não sei se é incondicionalmente bom ou mau, mas foi possível por meio de políticas pragmáticas. Não é socialismo, obviamente, mas é uma política para mostrar uma coisa: o neoliberalismo é uma mentira. Como é uma mentira aqui no Brasil.

Eles vão dizer que vão enriquecer o país. Não vão, vão empobrecer, vão criar polarização social. Dizem que vão fazer crescer muito a economia e criar empregos. Não, não creia, eles destroem empregos, porque querem as matérias primas cada vez mais automatizadas, cada vez menos gente no campo.

Lições de maturidade política

Embora Portugal seja apenas 1% do PIB da Europa, um país pequeno que não pode ter uma grande influência na União Europeia, agora o nosso ministro das Finanças é o presidente do Eurogrupo. A União Europeia, que ficou assustada com o Brexit, começa a ver que a experiência portuguesa no fundo faz muito mais sentido do que eles pensam e do que eles tinham vindo a pensar.

Não sei qual vai ser o futuro. A direita em Portugal está muito incomodada com essa solução, mas algo positivo é que a própria direita teve que se virar um pouco para o centro. Aquela direita neoliberal, que foi a daquela política de austeridade, tem os seus dias contados. Substituíram seu secretário-geral (do Partido Social Democrata, PSD). Hoje é um homem respeitado, um homem direito, doutor Rui Rio, que foi prefeito do Porto. O que ele quer fundamentalmente é uma coligação com o partido socialista, para que não haja uma coligação à esquerda. Bem, é legítimo dentro da luta partidária. Eu gostaria obviamente que essa coligação da esquerda continuasse, mas para isso o partido socialista tem que ajudar, porque o Bloco de Esquerda e o partido comunista têm dado uma lição extraordinária de maturidade política, com gente, no caso do Bloco de Esquerda, jovens e mulheres por volta de seus 40 anos, que não têm aqueles olhos voltados para o passado. Estão a olhar com para o futuro com outros olhos.

Confira aqui a primeira parte da entrevista com Boaventura de Sousa Santos

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