Direito

Processo de Lula mostrará se democracia no Brasil é real ou apenas retórica

Advogado Cristiano Zanin Martins detalha processo envolvendo ex-presidente e violações ao direto de defesa: 'Prefiro ainda acreditar que o país não vai usar as mesmas desculpas da ditadura'

TVT/reprodução

Cristiano Zanin Martins integra a equipe de advogados de defesa de Lula em processos que contrariam o Direito e a Constituição

São Paulo – Mais do que o caso jurídico envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso desde 7 de abril na Polícia Federal do Paraná, o programa da TVT Entre Vistas desta semana discute a própria situação da democracia brasileira (vídeo completo abaixo). O entrevistado é o advogado Cristiano Zanin Martins, que defende Lula, com participação de duas ativistas em direitos humanos. A recente manifestação do Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), pela participação do ex-presidente na eleição de outubro, foi um dos temas centrais. “Se o Estado brasileiro não aceitar, resta o quê? Apenas a vergonha?”, quis saber, logo no início, o jornalista e apresentador Juca Kfouri.

“Prefiro ainda acreditar que o Brasil não vai usar as mesmas desculpas da ditadura”, respondeu Zanin. Pouco antes, a professora e cientista política Glenda Mezarobba, uma das convidadas do Entre Vistas, havia comentado que o argumento da “soberania”, repetidamente usado para o caso Lula-ONU, representa uma falácia. “Não há nenhuma interferência na soberania nacional, nenhuma ingerência”, afirmou Glenda. “As ditaduras latino-americanas apelavam muito para esse argumento.”

Zanin entende que há tempo para o Brasil cumprir a decisão da ONU, mas Juca insiste: depois de tudo o que fizeram desde o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, vão “entregar” tudo na “boca do gol”, permitindo que Lula se candidate – e provavelmente vença, como indicam as pesquisas?

“Todo mundo vai ter de assumir a responsabilidade pelo que está acontecendo”, responde o advogado. “O Brasil terá uma responsabilidade internacional por isso.” A questão, diz ele, é saber se há uma democracia vigente no país ou apenas “um discurso retórico de democracia”.

A outra convidada, a advogada Juliana Avanci, manifestou preocupação quanto a possíveis consequências desse caso para o Direito brasileiro e sobre questionamentos do próprio Itamaraty a respeito do cumprimento de uma determinação das Nações Unidas, lembrando que o país é signatário de pactos internacionais. “Ninguém pode ser contra a Operação Lava Jato ou o combate à corrupção”, diz Zanin, com a ressalva de que é preciso, em qualquer situação, respeitar o devido processo legal. Não é o que acontece nessa questão. “Como pode a ONU servir de base para condenar, mas não pode ter seus tratados considerados quando são favoráveis à defesa?”, pergunta o advogado de Lula.

Desde o começo, acrescenta Zanin, a defesa demonstrou as diversas violações contidas no processo judicial do ex-presidente. Cita exemplos como a condução coercitiva (em março de 2016), a divulgação de conversas telefônicas e até grampos ilegais, o que aconteceu no “principal ramal” do escritório de advocacia que ele integra, “para monitorar e mapear a estratégia de defesa”. Tudo foi apresentado ao Judiciário, chegando ao Supremo Tribunal Federal, até se constatar “que não havia possibilidade de o presidente Lula receber um tratamento justo, imparcial e independente” no Brasil.

Juca reage imediatamente à informação sobre o “grampo” sofrido pelo escritório que trabalha para o ex-presidente. “Fôssemos um país mais sério, seria muito para mais que uma indignação.”

A opção pela ONU, em vez da Organização dos Estados Americanos (OEA) ocorreu por duas razões, basicamente, explica o advogado: pela celeridade e pela possibilidade de o ex-presidente  fazer diretamente sua defesa. No segundo caso, isso só poderia ocorrer após manifestação do Ministério Público.

Situação irreversível

O apresentador quer saber se há como recorrer, neste momento, a um tribunal brasileiro. Zanin lembra que agora se aguarda uma manifestação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre pedidos de impugnação da candidatura de Lula como candidato a presidente pelo PT. Ele observa que a decisão da ONU determina três itens, basicamente: que não se impeça a candidatura, que se permita acesso adequado de Lula à imprensa e também às pessoas de seu partido e da coligação. 

Em maio, diz o advogado, o Comitê de Direitos Humanos da ONU já havia dito que o Brasil não poderia criar “nenhuma situação irreversível” ao direito de o ex-presidente ser candidato. A determinação recente, avalia, é um desdobramento daquela manifestação. O colegiado se pronunciou para garantir um direito. “Ainda vamos ter o julgamento final”, observa Zanin, prevendo que isso aconteça no início do ano que vem.  

Trata-se de um processo “marcado por várias nulidades”, ressalta. “Como pode alguém ser condenado pela prática de ato indeterminado?”, questiona o advogado, para quem cada vez mais há uma percepção clara, sobretudo no meio jurídico, da existência de várias violações e irregularidades. 

Ele dá um exemplo que se tornou inclusive alvo de ironias nas redes sociais. “Nunca vamos esquecer do famoso PowerPoint, que chocou a comunidade jurídica internacional”, lembra Zanin, ao citar episódio envolvendo o procurador Delton Dallagnol, que em entrevista coletiva em fevereiro de 2017 “explicava” as relações de Lula com um esquema de corrupção na Petrobras, tratando o ex-presidente como culpado antes mesmo do processo. “Acredito que aos poucos essa percepção (sobre violações no processo) só vai aumentar.”

O apresentador do Entre Vistas relata ao falar com Lula para o livro A Verdade Vencerá, o ex-presidente manifestou irritação apenas ao comentar sobre um documento supostamente rasurado, afirmando que haviam entrado meses antes em seu apartamento e levado “até o iPad dos meus netos”. E quis saber do advogado sobre uma possível presença de “provas” forjadas pela acusação. 

Sem provas

A resposta vem por outra linha. “Tivemos 27 audiências e ouvimos 73 testemunhas”, diz Zanin, sobre o caso do triplex. “Nenhuma fez qualquer declaração que pudesse confirmar essa hipótese acusatória (contra Lula).” Diante disso, lembra, foi chamado um co-réu que pudesse fazer um discurso na linha pretendida pela acusação – e é essa declaração que foi base para a condenação. “Se isso não foi algo reprovável, eu não sei também o que é.”

Por que algumas perguntas de Zanin teriam irritado o juiz Sérgio Moro?, pergunta ainda Juca. “Tenho a consciência tranquila. Coloquei as questões que estavam sendo desprezadas. Penso que o incômodo muitas vezes decorre dessa situação”, comenta o advogado, cuja atuação nesses episódios procurava “escancarar” a falta de preservação do processo legal.

Ao lembrar das notícias veiculadas sobre o estado do famoso apartamento de Guarujá, a advogada Juliana pergunta se a defesa não apresentou nenhuma pedido de perícia do imóvel. Isso foi feito mais de uma vez, conta Zanin. “Todas as solicitações de perícia foram negadas.” Para ele, uma prova “cabal” da inocência de Lula está no fato de que o triplex havia sido dado pela empreiteira como garantia à Caixa Econômica Federal. Lula só poderia passar o apartamento em seu nome se pagasse integralmente o valor à Caixa, mas isso só mereceu um parágrafo na sentença, enquanto a delação do co-réu mereceu “uma centena de parágrafos”. 

Juca pergunta a Glenda se ela leu Kafka, que responde sim e, na sequência, pergunta se Zanin ainda acredita na Justiça. Sem tratar da instituição, ele afirma discordar “da forma como alguns agentes da Justiça estão atuando” nesse caso. “Você não pode substituir provas por uma campanha publicitária ou por depoimentos que são frutos de delação premiada. O resultado jamais será legítimo. Estamos já flertando com o autoritarismo, e isso não é bom para qualquer país, para a democracia.”

O advogado torna a falar do lawfare, expressão usada para descrever uma situação em que a lei é usada para perseguir alguém. “Existe hoje uma percepção de que o sistema de justiça pode ser uma ambiente propício para promover perseguição política”, afirma Zanin. Para Glenda, ressalvadas as diferenças entre os golpes de 1964 (militar) e de 2016 (parlamentar), é “muito assustador” pensar que o cidadão não tenha todas as garantias de defesa e que o sistema não funciona como deveria.

Para Juca, o advogado do ex-presidente entrará para a história como um Sobral Pinto, jurista brasileiro e notório defensor de direitos humanos. Não como um Gama e Silva, ministro da Justiça e teórico do AI-5.

Assista ao Entre Vistas com Cristiano Zanin Martins: