Eleições 2018

Bolsonaro no ‘Roda Viva’ desnuda estrago que a concentração da mídia faz ao Brasil

Veículos comerciais pavimentaram a estrada para o candidato do PSL crescer. E agora não sabem como lidar com ele

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“Cría cuervos que te sacarán los ojos”: o ditado espanhol pode se aplicar à mídia tradicional?

São Paulo – Já foram feitas diversas análises da participação do presidenciável do PSL, o deputado Jair Bolsonaro, no programa Roda Viva, da TV Cultura, na segunda-feira (30). O programa alcançou recordes de audiência em sua série com presidenciáveis, tanto na televisão aberta quanto no YouTube. Parte disso é fruto do engajamento do seu séquito, outra parte vem da chamada “torcida contrária” que queria ver o candidato sangrar (ou passar vergonha) em rede nacional.

Pode-se dizer que Bolsonaro não decepcionou nenhum dos dois segmentos. Seu discurso habitual carregado de ódio à esquerda e desrespeito a minorias estava lá, em seu habitual lugar de lugares comuns hoje banais em grupos de Whatsapp e comentários de portais e redes sociais. O presidenciável é o amálgama disso e não desagradou seu eleitorado. Por outro lado, ao falar de Vladimir Herzog, desancar José Gregori, negar ou relativizar a tortura na ditadura civil-militar, defender “licença para matar” para as polícias, causa ojeriza e repulsa de outra parcela da sociedade.

Em julho de 2015, Bolsonaro já aparecia em uma pesquisa CNT/MDA com índices que variavam entre 4,6% e 5,5%. Pouca gente se preocupou, mas era a primeira vez que o candidato saía da margem de erro. Ocupava um espaço aberto graças, em parte, à agressiva campanha do tucano Aécio Neves no ano anterior, onde apelou para o mais raso antipetismo (que na prática tinha como alvo todo campo da esquerda ou similar) para, primeiro, chegar ao segundo turno superando Marina Silva, e depois tentar bater Dilma Rousseff. O presidenciável do PSDB, em sua empreitada, contou com a generosa ajuda da mídia que se pretende hegemônica. E também não recusou – ou até cortejou – o auxílio de páginas proto fascistas e grupos vindos dos subterrâneos das redes sociais.

Foi essa mesma mídia que ajudou a inflar os protestos contra a presidenta Dilma Rousseff. Ali, outros veículos não alinhados já denunciavam todo o caldo que incluía extremismos perigosos, saudações à ditadura e toda a agressividade que era sublimada na cobertura jornalística tradicional em nome de uma “causa maior”: alijar o grupo político que estava no governo.

O que saiu do previsto naquela altura era que o sentimento antipetista extrapolasse seus limites e se tornasse antipolítico. Alckmin e Aécio foram hostilizados em uma das manifestações pelo impeachment na Avenida Paulista. Um estudo feito em meio ao protesto anti-Dilma de 12 de abril de 2015, 73,2% dos entrevistados diziam não confiar em partidos. Mesmo a legenda com maior apoio, o PSDB, tinha a confiança de apenas 11% dos manifestantes.

Estava aberto o caminho para Bolsonaro, que desde então cresceu, assegurando a vice-liderança nas sondagens. Ontem, os entrevistadores do Roda Viva fizeram algum esforço para desconstruí-lo. Mas é bom lembrar que o deputado não é alguém que surgiu agora. Há anos destila ódio e preconceito na Câmara dos Deputados. Em 2009, por exemplo, dizia que “quem busca osso é cachorro”, se referindo às buscas pelos restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia, pendurando na porta de seu gabinete uma camiseta com a mensagem: “Direitos Humanos: esterco da vagabundagem”.

Isso não causou espanto na mídia tradicional, e quase ninguém repercutiu. Em uma das perguntas feitas a ele no Roda Viva, Bolsonaro devolveu dizendo que o jornal O Globo, em editorial, havia saudado a derrubada de João Goulart, demonstrando o apoio da mídia ao golpe de 1964. Em resposta, um dos membros da bancada disse que diversos veículos fizeram mea culpa em relação a seus posicionamentos à época. Mas não há registro de nenhuma retratação, por exemplo, da Folha de S.Paulo por denominar o período da ditadura civil-militar de “ditabranda”. Isso foi dito há alguns anos, em editorial de fevereiro de 2009, e não na década de 1960…

O fato é que toda a mídia tradicional se importa muito pouco com os direitos humanos. Com direitos sociais. Com direitos, enfim. Nada mais natural que tenha problemas em afrontar Bolsonaro em um debate desses. Tome-se outro exemplo da entrevista com o candidato do PSL. Por meio de uma pergunta gravada por Frei David, da ONG Educafro, Bolsonaro é questionado a respeito do sistema de cotas. Desfila um festival de bobagens históricas e lugares-comuns sobre meritocracia.

Até observam o que disse a respeito da colonização portuguesa, mas entre os membros da bancada, onde não há nenhum negro, não se dá uma palavra sequer a respeito dos evidentes resultados do sistema de cotas no Brasil. Simplesmente porque cotas ou desigualdade racial são pautas que não interessam aos veículos comerciais que, ou se calam a respeito ou, assim como Bolsonaro, evidenciam seu posicionamento contrário ao sistema em editoriais e na sua cobertura.

Quando questionado sobre programa de governo ou iniciativas concretas que poderia tomar como presidente, o presidenciável do PSL se confunde, como aconteceu quando se aventurou a falar de saúde pública. Poderia ter sido confrontado, por exemplo, sobre seu posicionamento favorável à “reforma” trabalhista, aquela que iria criar empregos, mas que não só precarizou a mão de obra no país como foi incapaz de deter o aumento do desemprego. Mas aí havia um problema: os veículos representados na bancada do Roda Viva também são favoráveis à dita reforma.

A falta de diversidade da composição da bancada reflete, na prática, a concentração da mídia brasileira. Essencialmente comercial, anabolizada pela falta de regulação e oligopolizada, caminha em marcha unida e em diversos pontos pensa igual a Bolsonaro. Talvez aí resida o porquê de ser tão difícil para essa mesma mídia desconstruí-lo, tarefa necessária para que o candidato do establishment, Geraldo Alckmin (PSDB), chegue ao segundo turno. Além disso, pode ser que esse mesmos veículos precisem ainda do candidato do PSL. No vale-tudo midiático, a diferença entre civilização e barbárie é mais tênue do que se enxerga.

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