Olhar latino-americano

Livro reúne pensamento de Marco Aurélio Garcia sobre papel do Brasil

Professor e ex-assessor, que morreu há quase um ano, foi ativista pela opção prioritária do país com a América Latina. Lula destacou papel fundamental na construção de uma nova política externa

Kamilla Ferreira/Agência PT

Marco Aurélio defendia que política externa é elemento essencial do projeto de desenvolvimento de um país

São Paulo – Mais do que o lançamento do primeiro livro de uma coleção sobre o pensamento de Marco Aurélio Garcia, na noite dessa quinta-feira (21), o evento fez reverência política e afetiva ao professor e assessor para assuntos internacionais dos governos Lula e Dilma, que morreu em julho do ano passado, aos 76 anos. A Opção Sul-Americana – reflexões sobre política externa (2003-2016) reúne uma seleção de textos de Marco Aurélio sobre a inflexão brasileira iniciada nas gestões petistas, quando o país privilegiou relações com países vizinhos.

Alguns ex-ministros foram ao lançamento, na Fundação Perseu Abramo (FPA), zona sul de São Paulo, casos de Eleonora Menicucci, Paulo Vannuchi, Luiz Dulci e Celso Amorim. O diplomata, que conheceu Marco Aurélio nos anos 1960, destacou a inteligência viva, capacidade de apreender coisas com rapidez e o senso de humor imbatível” do amigo, que segundo ele foi um alter ego de Lula em relação a assuntos internacionais. Amorim também lamentou a atual política externa brasileira, falando em “destruição” da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), criada em 2008.

Em um dos textos reunidos no livro, escrito também em 2008, Marco Aurélio afirma que a política externa é “sobretudo um elemento essencial do próprio projeto de desenvolvimento de um país”. E destaca a opção brasileira, “entre uma inserção solitária no mundo ou buscar uma associação com países de seu entorno, com os quais comparte história, valores e possibilidades de complementação econômica”. 

O ex-ministro chileno Carlos Ominami classificou Marco Aurélio como “o mais militante dos intelectuais e o mais intelectual dos militantes”, e ainda “o mais chileno dos brasileiros”. Segundo ele, o amigo faz falta nos tempo difíceis vividos no Brasil e em outros países do continente.

Irreverência

Em termos de conhecimento sobre a política internacional, a filósofa Marilena Chaui comparou Marco Aurélio Garcia ao historiador inglês Eric Hobsbawn. Para ela, a irreverência do professor e assessor era o que possibilitava “lidar com as questões do poder”. Ele também não tinha “o menor respeito pela classe dominante” em geral, mas particularmente da brasileira. “Foi com ele que aprendi a não olhar para o alto com temor e respeito.”

O vasto acervo de Marco Aurélio foi doado ao Arquivo Edgar Leuenroth, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde ele lecionou. Diretor do arquivo, Aldair Rodrigues contou que o material tem itens como rascunhos dos programas de governo, anotações, recortes de jornal e diversos e-mails que o intelectual imprimia “obsessivamente”. E lembrou que o professor ajudou a organizar um avançado laboratório de digitalização, “apesar de ser um homem gutemberguiano”. 

O Arquivo Edgar Leuenroth (nome de um jornalista e militante anarquista do início do século passado) “é certamente um dos principais centros de documentação do mundo a respeito dos movimentos sociais”, afirmou Rodrigues. Ele lembrou que, ainda ontem, foi incorporado o acervo do Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro.

Primeiro de uma série de três, o livro lançado ontem foi editado pela Fundação Perseu Abramo e pelo Instituto Futuro Marco Aurélio Garcia, dirigido pelo ex-ministro Luiz Dulci e criado no ano passado, resultado de parceria entre a Universidade Metropolitana para a Educação e o Trabalho (Umet), de Buenos Aires, e o Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (Clacso). Dulci citou frase do professor e jornalista argentino Martín Granovsky, para quem Marco Aurélio “foi a coisa mais próxima que já tivemos de um cidadão latino-americano”.

Organizado pelo servidor público Bruno Gaspar, ex-aluno e ex-assessor de Marco Aurélio, e pela jornalista Rose Spina, A Opção Sul-Americana tem prefácio de Paulo Sérgio Pinheiro e um texto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva escrito em maio, portanto já depois de sua prisão. Lula afirmou que MAG, como também era conhecido, “foi um dos principais construtores do verdadeiro salto histórico que a América Latina deu na última década, em termos de desenvolvimento, igualdade social e luta por um mundo de paz e cooperação”. 

O último a falar foi Leon, filho único de Marco Aurélio e psiquiatra. Ele destacou várias lembranças da convivência com o pai e seu trabalho incessante. “Eu cresci numa casa cercada de livros e muitos jornais, muito acima da capacidade de armazenamento. As pilhas de jornais eram muito altas e às vezes despencavam. Cheguei a pensar, se tivesse alguma veleidade artística, em fazer uma instalação”, contou, provocando risos na plateia.

Segundo Leon, que foi ao lançamento ao lado do filho Benjamin, seus pais (Marco Aurélio casou-se em 1965 com Beth Lobo) foram pessoas que “colocaram suas vidas a serviço da luta social e da militância política”. 

Soberania em risco

Em texto do ano passado, Uma política externa altiva e ativa, Marco Aurélio Garcia revela sua preocupação com os rumos políticos no pós-impeachment. “O golpe parlamentar que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, com forte apoio da quase totalidade dos meios de comunicação, dos empresários e de importantes segmentos do Estado (parte do Ministério Público, da Polícia Federal e do Poder Judiciário) está produzindo profunda regressão política no país. (…) A presença soberana do Brasil no mundo vem sendo meticulosamente desconstruída, o que é bastante grave.”

Na avaliação do ex-assessor, apesar dos avanços da década passada, principalmente quanto à integração continental, a política externa brasileira “deveria ter assumido um ritmo mais intenso, que permitisse vencer obstáculos internos e resistências nacionais, em outros países, compreensíveis, principalmente, em períodos de crise econômica global, como o que passamos a viver a partir de 2008”.

E conclui, no artigo: “É fundamental entender que está em curso uma grande mudança geopolítica no mundo. Não só entender, mas revertê-la”.

Baixe aqui o livro em pdf.