Trincheira

Intervenção no Rio escancara apartheid social que toma conta do país

Debate promovido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP mostra que 'instituições não estão funcionando' e militarização não é o caminho

Tomaz Silva/Agência Brasil

Não há saída para situação da violência enquanto única política pública que chega nas periferias é o fuzil dos militares

São Paulo – “Absurdo”, “decisão extrema”, “preocupante”, “hipocrisia”, “inconstitucional”, “retrocesso”, “inócuo”, “covarde” foram alguns dos termos utilizados por defensores de direitos humanos e ex-autoridades das áreas da Justiça e de Segurança para classificar a intervenção federal no Rio de Janeiro. Eles se reuniram nesta quinta-feira (1º) em São Paulo, em evento promovido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), e prometeram acompanhar de perto os desdobramentos da iniciativa, que coloca os mais vulneráveis na mira da repressão, com elevado risco de violação dos direitos humanos, e que abala os alicerces da democracia no país, além de ser ineficaz como medida de combate à violência.  

A reunião foi aberta pelo cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, ministro de Direitos Humanos do governo de Fernando Henrique Cardoso, responsável por convocar os colegas para o que chamaram de uma “conspiração do bem”, que ressaltou que o centro das preocupações dos defensores na atual conjuntura deva ser os direitos da população pobre, dos trabalhadores de baixa renda e dos jovens que vivem nas periferias do Rio de Janeiro sob ocupação.

Ele destacou que a atual situação é tão “estranha” que faz lembrar o regime de apartheid da África do Sul, com manuais que surgem na internet que orientam a população negra a portar documentos e notas fiscais de produtos e evitar o uso de furadeiras e guarda-chuvas de cabo longo, para não serem confundidos com bandidos portando armamentos ao serem abordados pelas forças de segurança.

Guerra perdida 

Ministro da Defesa do governo Lula, José Viegas atribuiu a crise de segurança à descontinuidade das políticas na área, devido à alternância dos grupos políticos que chegam ao poder. “Começam um programa e não terminam nunca”. Ele também ressaltou as incertezas no cenário eleitoral, que agravam a crise institucional. Segundo Viegas, caminhamos para as eleições de outubro próximo “de olhos vendados”, dada a indefinição das candidaturas em todo o espectro político. 

Viegas afirmou que a “violência coletiva” se escora no narcotráfico, que detém o monopólio do comercio das substâncias ilícitas, e defendeu uma revisão da política antidrogas. Segundo ele, forças de repressão não são capazes de vencer essa dita “guerra”. “Nunca ocorreu, nem aqui nem em nenhum lugar do mundo.”

Ele defendeu a articulação da sociedade civil, que precisa abandonar a “timidez”, principalmente durante a implementação do novo ministério extraordinário da Segurança Pública, para dizer aquilo que realmente deseja, sob pena de ser levada de roldão pelos militares, que se alimentam do vácuo institucional generalizado.

Como alternativa ao emprego das Forças Armadas, ele sugeriu a criação de uma força federal de segurança, “densa”, composta eventualmente por egressos das Três Armas, sob comando civil, mas diferente da atual Força Nacional que, segundo ele, sofre pela falta de unidade de comando, de treinamento específico, é cara e “pouco efetiva”. 

Custo social

Milhares de crianças sem escolas e fechamento de postos de saúde nas comunidades foram citados como exemplo do custo social “incalculável” da intervenção. Julita Lemgruber, que dirigiu o sistema penitenciário e comandou a primeira ouvidoria da Polícia do Rio de Janeiro, criticou a opção pelo “combate brutal” ao varejo do tráfico, nas periferias, enquanto na zona sul da cidade é possível conseguir drogas pelo telefone.

“Na favela, a única política pública é o fuzil apontado para a cabeça do morador”, afirmou Julita, que destacou que foram gastos mais de R$ 500 milhões durante a ocupação pelas Forças Armadas, que durou 15 meses, no Complexo da Maré. “É covardia e desperdício de dinheiro público. Ninguém está preocupado com o bem-estar de quem mora na favela.” 

Ela também classificou a intervenção como uma jogada política com vistas a aplacar os índices de impopularidade do governo federal e de Temer, em especial, e frisou que a decisão foi tomada em reunião, durante o Carnaval, que contou com a participação de Moreira Franco (Secretaria-geral da Presidência) e marqueteiros. A jogada publicitária também foi auxiliada pelos veículos da Rede Globo que, durante os dias de folia, reprisou a exaustão cenas de violência nas praias cariocas, de modo a legitimar a medida de força. 

Três elos do golpe

Para o embaixador Tadeu Valadares, ex-diretor de Direitos Humanos do Ministério das Relações Exteriores (MRE), a intervenção militar no Rio é consequência do “golpe parlamentar, econômico e midiático”, que ameaça a democracia desde 2016. Impeachment, a condenação do ex-presidente Lula pelo tribunal de Porto Alegre e agora a intervenção, segundo ele, são três elos de uma mesma corrente que reduz a população à condição de “não cidadãos”. “Já somos cidadãos um tanto em processo de atrofia.” 

Rio fatiado

O ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo afirmou que o decreto de intervenção é “absolutamente equivocado”, pois criou situação nova no Direito Constitucional ao “fatiar” as atribuições do governo do Rio, com ingerência federal apenas no âmbito da segurança pública, o que contribui para tornar o cenário ainda mais “caótico”, segundo ele. 

Lembo ressaltou o passado de “aberturas e fechamentos” ao longo da história do Brasil e se mostrou pessimista com o que chamou de “caminhada amarga” para o futuro da democracia. Segundo ele, depois da intervenção, virá o Estado de Defesa e de Sítio, medidas extraordinárias que constam na Constituição e preveem, aí sim, o cerceamento de direitos dos cidadão. “Só os ingênuos não percebem. Teremos eleições? É uma pergunta.”

Remédio Amargo

Único a destoar do tom geral de condenação à intervenção, o jurista José Gregori, ministro da Justiça do governo FHC, ressaltou que é expediente previsto na Constituição, e teve que ser acionado dada a situação de “anomia” e “não governo” que se verificava, com a população “prestes a passar ao desespero”, com assassinatos “em todos os níveis sociais e latitudes”.

Ainda que tenha defendido a aplicação do dito “remédio amargo”, Gregori exortou os defensores dos Direitos Humanos e o conjunto da sociedade civil a se declararem em “assembleia permanente” para acompanhar a crise de violência e os impactos da intervenção.

Ele também apelou ao recém-empossado ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, para que volte atrás nas ações de fichamento da população das comunidades que, segundo ele, “não conferem vantagens operacionais às forças de segurança”, e podem ser vistas como “indício” e “tendência” ao apartheid social. 

Desalento

O ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade José Carlos Dias, que também esteve à frente da pasta da Justiça durante o governo FHC, afirmou que o momento é de “profundo desalento”, com descrédito brutal nos poderes da República, inclusive o Judiciário. Ele disse que, em vez da intervenção, é necessária uma reformar dos sistemas político, jurídico, penal, além de rever a política antidrogas, mas “não existe coragem”, segundo ele. 

“Enquanto não enfrentarmos o problema da descriminalização, não teremos possibilidade de caminhar”, afirmou ele, relacionando à falida política repressiva ao inchaço dos presídios, onde os detentos são “tratados como animais”, e recrutados pelo crime organizado.