'Teratológico!'

Para juristas, caso Lula desprezou regras, mostrou arbítrio e falso heroísmo

Lula pode ser candidato? Não há jurisprudência eleitoral, lembra professora. Advogada criminalista critica 'magistrados pueris, com fetiche de serem heróis' e ex-secretário aponta 462 gravações ilegais

Valter Campanato/Agência Brasil

Conduta de Moro foi considerada típica de magistrado ‘com fetiche de ser herói’, que resultou em sentença monstruosa

São Paulo – Professora do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Eneida Desiree Salgado antecipou-se à questão para tentar responder se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva poderá, afinal, ser candidato este ano, algo que considera possível. “Se é provável, é uma outra questão”, afirmou, lembrando que não existe jurisprudência eleitoral. Ele participou de seminário promovido pelo Instituto Lawfare, ontem (29) à noite, para avaliar o caso Lula e seus desdobramentos. Eneida observou que a Justiça Eleitoral tem cassado mais mandatos que a ditadura e “desprezado a soberania popular de maneira desavergonhada”.

Participaram do encontro o advogado Geoffrey Robertson, que representará Lula na Organização das Nações Unidas, e advogados de diferentes formações, como o ex-secretário estadual de Justiça Belisário dos Santos Jr., identificado com a área de recursos humanos, o constitucionalista Pedro Serrano, a criminalista Eleonora Nacif, Walfrido Jorge Warde Júnior (Direito societário) e o professor Reginaldo Nasser (Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a PUC-SP), além do sociólogo Jessé Souza e o ex-ministro Celso Amorim.

Realizado no Tucarena, na PUC, na zona oeste de São Paulo, que excedeu a capacidade de 300 lugares, o ato também valeu como desagravo aos advogados Cristiano Zanin Martins e Valeska Martins, que fazem a defesa do ex-presidente. O seminário foi iniciativa do Instituto Lawfare, criado pelos dois em parceria com Rafael Valim.

Lawfare é termo do mundo jurídico empregado em situações de perseguição política pela via judicial. “O abuso das leis para fins políticos”, definiu Valeska. Durante as duas horas e meia de debate, a expressão foi citada várias vezes, com críticas a procedimentos usados na Operação Lava Jato e, particularmente, no processo envolvendo Lula.

Eleonora, por exemplo, não citou o nome, mas fez referência clara ao juiz federal Sérgio Moro, ao falar que o poder exercido no Direito “muitas vezes cai nas mãos de magistrados pueris, com fetiche de serem heróis”, um desejo que pode ser consciente ou não. Mas que ato heroico há em condenar alguém sem provas?, questiona. “Isso é teratológico!”, afirmou, usando uma expressão que pode ser traduzida como “monstruosidade”, mas também como uma decisão absurda do ponto de vista jurídico. Para ela – também professora da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP) e diretora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) –, não é preciso ser expert para perceber que “nesse caso o processo está inteiramente nulo”.

Belisário falou em “cartas marcadas” e em tentativa de desprestigiar os advogados no processo. “Está se instalando entre nós um arbítrio. Temos hoje em um dos processos da Lava Jato 462 gravações ilegais de advogados conversando com seus clientes. Há um ambiência criada, por equívoco ou de propósito, em que a ilegalidade é aceita. Isso não é o Estado de direito. Eu nunca vi antes do julgamento presidente de tribunal dizer que a sentença era certa”, acrescentou, citando o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), Carlos Eduardo Thompson Flores, que em entrevista, antes do julgamento pela 8ª Turma da Corte, elogiou a decisão de primeira instância. 

Advogado de presos políticos durante a ditadura, ele apontou outros problemas, como admissão de provas ilícitas e restrição ao uso de habeas corpus. “A nossa democracia não vai melhorar com a anulação da presunção de inocência. Não há julgamento justo sem respeito ao Estado de direito e aos diretos humanos, e não há democracia sem respeito aos advogados.”

Para Nasser, o caso “vai além” de Lula, do PT e do Brasil. “Devemos levar adiante essa ideia do lawfare. A luta é internacional. Devemos tirar lições e buscar novos aliados”, afirmou. 

Por lawfare, disse o ex-ministro Celso Amorim, entende-se primeiro buscar o culpado, depois encontrar o crime. Ele afirmou considerar o instrumento da delação premiada, na verdade, uma “coerção premiada”, apontando violações de direitos humanos e considerando “extremamente simbólico” o fato de, em outra decisão judicial, Lula ter sido proibido de viajar ao exterior. 

Teoria conspiratória

Simbólico porque a viagem seria a Adis Abeba, capital da Etiópia, onde até o governo Lula o Brasil não possuía embaixada – exemplo da mudança na política de relações internacionais adotada pelo Estado brasileiro naquele período. “É uma coisa quase mesquinha e sem propósito”, afirmou Amorim. Segundo ele, Lula teve “zero influência” na escolha dos caças suecos Gripen, comprados pelo Brasil.

Amorim afirmou que a reação da mídia estrangeira varia “entre a perplexidade e a indignação” com o caso Lula. Ele vê no processo algo que ultrapassa o interesse da elite brasileira, um “esforço de dominação do capital financeiro internacional, para o qual a democracia deixou de ser funcional“. Ele disse que passou a acreditar em teorias conspiratórias e citou o escritor Millôr Fernandes: “O fato de eu ser paranoico não quer dizer que eu não seja perseguido”.

Ao afirmar que “nunca deixou de haver autoritarismo, formas vis de comportamento, na história humana”, Serrano, professor de Direito Constitucional na PUC, acrescentou que agora a barbárie é praticada em “formato de civilização”. “O que nós temos hoje são medidas de exceção, barbáries, no interesse de regimes democráticos. O sistema de Justiça passa a ser o agente de exceção.”

E as provas?

Ele destacou a necessidade de provas. “Não existe jogo de interpretações, os fatos têm de ser incontroversos.” Sobre o julgamento no TRF4, considerou uma espécie de “desagravo” ao juiz Moro. “Creio que ninguém quer que o presidente Lula seja tratado além da lei, mas também não pode ser tratado aquém da lei. Ele deve ser tratado como cidadão, não como inimigo.”

Para Walfrido Warde, falta definir objetivamente o conceito de corrupção. “Os atos de corrupção são determinados por acaso, saem da cabeça do magistrado, do fígado dos promotores.” Segundo ele, o combate “inconsequente, irresponsável” à corrupção traduz-se em ataque a empresas nacionais e a recursos do país. “Me causou muita surpresa a maneira célere com que o processo foi julgado”, disse sobre o caso Lula no TRF4, com tramitação bem mais rápida do que a média daquele tribunal. 

“Precisamos debater qual é o modelo jurídico que devemos observar no Brasil”, afirmou Cristiano Zanin, para quem o processo da Operação Lava Jato dispensou a aplicação de garantias legais e de regras gerais, configurando um Estado de exceção. “No caso do presidente Lula, foram sucessivas as vezes em que vimos as leis e os direitos fundamentais sendo desprezados. Partiu-se de um conceito de atos indeterminados, a partir de um depoimento de um corréu. Não se pode condenar ninguém com algo tão frágil”.

O advogado afirmou que se trata de um caso marcado por violações não só a Lula e sua família, mas também aos advogados, como no episódio da interceptação telefônica do ramal-tronco do escritório. “Toda a estratégia (de defesa) não só havia sido ouvida, mas estava esquadrinhada em anotações da Polícia Federal. Evidente que aniquila o direito de defesa.”

Valeska disse que as 73 testemunhas apresentadas pela defesa “foram ignoradas pela mídia”, que teria 70% de suas fontes vindas da Polícia Federal, do Ministério Público e do Judiciário. “Estamos vivendo um período em que o inimigo não pode ter direitos.”