Caravana

Para Lula, racismo é doença e dívida com povo africano é impagável

Em cerimônia de formatura no campus da Unilab na Bahia, ex-presidente diz que Brasil 'está pagando as horas, anos e séculos da vida dos que foram trazidos para trabalhar até morrer sem ganhar'

Ricardo Stuckert/Fotos Públicas

Formando Moacir Armando Soares Gama é cumprimentado por Lula após receber o diploma de suas mãos

São Paulo – Os jovens se atiravam nos braços dele como se fosse alguém da família. Cada formando escolheu a própria música que comporia o momento em que fosse receber o canudo das mãos de “Luiz Inácio Unilab Lula da Silva”, como anunciou o orador. Suas faces estampavam beleza, orgulho de suas histórias e de suas origens. Roupas coloridas, penteados afro externavam o espírito: aprendemos a resistir desde cedo, como disse a oradora, ao mencionar reportagem da Folha de S.Paulo, que trazia como destaque a crise da faculdade. “Quem quer uma faculdade de negros e negras, pobres, indígenas, quilombolas, africanos?”, questionou, ao definir o perfil da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.

Aquela cerimônia de formatura encerrada na noite desta sexta-feira (18) respondia. Os alunos Fernando Colônia, da Guiné-Bissau, e Fabiana Pedreira, do Brasil, ao falar em nome de suas turmas, pediram que a Unilab seja ampliada com mais cursos. “Agradecemos (ao ex-presidente Lula, patrono da formatura) por ter sancionado a lei de criação desta nossa Unilab, possibilitando que as duas margens opostas do Atlântico se reencontrassem, dessa vez em outras condições, para que assim nós, negras e negros, brasileiros e africanos, pudéssemos construir uma nova história, de mãos dadas, a caminho da nossa emancipação política e social”, disse Fabiana.

A gratidão a Lula é manifestada nos sorrisos, aplausos, nas infindáveis selfies. Mas os principais homenageados eram eles mesmos, desde a menção à história de seus antepassados e todos os negros e negras, ao carinho para com a funcionária Chica, do restaurante universitário. O Campus dos Malês da Unilab fica em São Francisco do Conde, na região metropolitana de Salvador. A maioria de seus 40 mil habitantes forma a maior população negra do país.

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Itelvina José Fernandes, de Guiné-Bissau caçula entre os cinco irmãos e primeira a obter diploma universitário

Entre eles a família de Itelvina José Fernandes, de Guiné-Bissau, que acabara de receber o canudo das mãos do Doutor Honoris Causa da Unilab, Luiz Inácio Lula da Silva. “Sou a caçula da minha família. Tenho mais quatro irmãs e um irmão e sou a primeira a receber um diploma”, diz. “Estou sem palavras para explicar como é receber um diploma das mãos do presidente Lula. Isso só foi possível graças a uma política de Estado do Brasil.”

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    Durante seus 15 minutos de fala, encerrados às 23h30 de ontem, Lula contou que foi ao Senegal quando era presidente, junto com seu então ministro da Cultura, Gilberto Gil. Ao visitar a “Porta do Nunca Mais”, lugar onde os africanos escravizados deixavam o continente, refletiu: “Como mensurar uma dívida dessa? O trabalho que nunca foi pago?”, disse classificando a escravidão como dívida impossível de ser paga em dinheiro. “Vocês não devem nenhum favor a este país. O Brasil não está fazendo favor, está pagando as horas, os anos e séculos da vida de africanos que foram trazidos para cá e trabalharam até morrer sem ganhar nada”, disse.

    O patrono cumprimentou todos os formandos e observou que, apesar dessa dívida impagável, o racismo ainda persiste na sociedade brasileira, citando diretamente o Campus de Redenção (CE), sede da Unilab. “Certamente se fossem brancos de olhos verdes, não haveria esse preconceito”, criticou. E definiu: “Preconceito não é posição política, é doença.”

    Ouça a fala de Lula (16 min)

    Título na ruas

    A sexta-feira da Caravana Lula Pelo Brasil começou no município de Cruz das Almas. A chegada de Lula à cidade de 75 mil habitantes, a 150 quilômetros de Salvador, teria como objetivo a entrega do título de Doutor Honoris Causa pela direção da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). A inciativa foi barrada ontem por um juiz federal local, atendendo a um pedido do vereador de Salvador Alexandre Aleluia (DEM).

    Assista à reportagem do Seu Jornal, da TVT

    A estudante de Biologia Clícia Tainã Cerqueira Bonfim acompanhou a chegada da caravana com uma única esperança: dar um abraço no visitante. Aluna da universidade, erguida na região durante o governo Lula, Clícia revelou sentimento de frustração dos estudantes. “Toda a cidade esperava por ele aqui com a esperança de poder abraçá-lo. A maioria dos estudantes sabe da importância dele para a universidade, é uma região muito marcada pelos preconceitos, já que é grande o número de negros e pobres que vivem aqui”, disse. “Esse título seria uma forma de a gente agradecer. A proibição até da entrada dele na universidade causou indignação muito grande. Mas, simbolicamente, esse título é do presidente, e de uma certa forma ele sabe disso.”

    Sabe mesmo. Em entrevista a uma emissora local ainda pela manhã, o ex-presidente minimizou a decisão judicial. Criticou a medida, descabida do ponto de vista da autonomia das universidades, mas disse ter sido compensado pelo carinho dos baianos. “Cada menino negro da Bahia que recebeu o seu diploma é o meu título de Honoris Causa. E isso nenhum vereador ou juiz pode apagar”, afirmou.

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    Aos 2 anos, Luiz Inácio Lula da Silva é apresentado ao xará

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    Chegada de Lula a Cruz das Almas

     

    “Se eu fosse um cara que tivesse um coração fraco, eu não sei o que teria acontecido comigo ontem (17). Foi muito forte, nunca vi tanto carinho e tanto afago comigo como o povo baiano demonstrou”, disse, sobre seu desembarque em Salvador para iniciar a caravana que percorrerá, até 5 de setembro, 4 mil quilômetros para passar por 25 municípios dos noves estados do Nordeste.

    Na quinta, Lula encontrou-se com o jovem Everton Conceição Santos, hoje aluno do 1º ano do ensino médio em Lauro de Freitas, na Grande Salvador. Everton tinha 7 anos quando, durante a campanha presidencial de 2006, protagonizou uma foto histórica ao estender o braço ao ex-presidente numa vista do então candidato à cidade. Ontem, em Cruz das Almas, no Festival da Juventude, foi apresentado ao menino Luiz Inácio Lula da Silva, 2 anos.

    Ao abordar a “agenda universitária” da caravana, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) e o ex-ministro e ex-governador baiano Jaques Wagner lembraram a origem de seu ativismo político no movimento estudantil. “Fui presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1992, durante o movimento de impeachment contra o presidente Fernando Collor de Melo. Entrei na universidade em 1987. Naquele período, teve a Constituinte. E tinha uma briga do movimento estudantil, das universidades, que era a luta pela autonomia universitária. Naquele momento se criou um consenso: ninguém poderia meter o nariz nas universidades públicas. Por isso, quero dizer que a atitude desse juiz é uma nova invasão às universidades públicas”, afirmou.

    Jaques Wagner lembrou que sua primeira participação em um evento estudantil foi num momento emblemático da ditadura. “Em 1968, foi quando as forças de repressão militar mataram o estudante Edson Luiz, no Calabouço, restaurante da UFRJ. E o calabouço era muito perto do lugar onde eu estudava. Então veio uma multidão de jovens carregando o corpo de Edson Luiz e o levaram ele até a Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, e até a Assembleia Legislativa. Eu, sem muita elaboração, saí da sala de aula para acompanhar. Eu já tinha algum grau de consciência política mas nunca tinha militado na esquerda, no movimento estudantil. Então eu desci e foi um alvoroço. A partir dali foi convocada aquela superfamosa passeata dos 100 mil.”  

    O presidente da CUT, Vagner Freitas, associou a liminar que vetou a entrega do título a Lula ao autoritarismo do passado e afirmou que denunciará internacionalmente o episódio. “O que esse vereador e esse juiz estão fazendo, eles acham que é contra o Lula, mas não é. O Lula já é conhecido internacionalmente. Eles estão atentando contra a autonomia das universidades. E contra isso temos que fazer uma grande luta.”

    Vagner Freitas enfatizou que a caravana não é uma campanha política, mas “uma jornada pelo Brasil, pela retomada da esperança”. O sindicalista disse que espera por uma grande mudança no Brasil, em 2018, capaz de revogar “tudo o que foi feito por este governo golpista”. “Revogar reforma trabalhista, revogar o congelamento dos investimentos, construir um governo do povo para o povo. Revogação para a mudança.”

    Com reportagens da Cláudia Motta, enviada à Bahia e informações da Fundação Perseu Abramo e da TVT.
    Edição: Paulo Donizetti de Souza

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