Público ou privado?

Em 45 dias, prefeito Doria teve 30 encontros com empresários

Aproximação com o setor privado pode até não ser danosa, segundo especialistas, mas falta de planejamento, de transparência e de diálogo representa riscos para o futuro da capital paulista

reprodução/Facebook/João Doria

Em reunião com secretários, prefeito Doria grava vídeo fazendo propaganda de óleo de peixe

São Paulo – Nos primeiros 45 dias da nova gestão municipal, o prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), realizou 30 encontros oficiais com empresários de diversos setores. Foram reuniões, audiências, almoços e jantares com representantes de empreiteiras, construtoras, do setor de serviços, alimentação, seguros, laboratórios farmacêuticos, empresas jornalísticas e de comunicação, setor financeiro e consultorias, entre outras, todos compromissos oficiais registrados na agenda divulgada no site da prefeitura. 

Já na sua primeira semana de governo, Doria se reuniu com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban).  Além do setor financeiro, Unilever, Procter&Gamble, McDonalds, Ambev, Coca-Cola, Nike, Samsung, IBM, Avon, Porto Seguro, Editora Abril, Grupo Bandeirantes, TV Globo e Embratel são algumas das empresas que tiveram representantes recebidos pelo prefeito, que faz questão de negar que seja um político e apresenta a si mesmo como gestor. 

Esses dados excluem ainda os encontros empresariais travados por Doria durante viagem ao Oriente Médio ao longo desta semana, onde anunciou “o maior programa de privatização da história de São Paulo”, em vídeo promocional voltado a eventuais investidores. Na semana passada, também postou em sua página no Facebook um vídeo fazendo merchandising de complexos vitamínicos de outro empresário amigo, durante reunião com secretários, em que destacou a importância desses produtos para os seus secretários aguentarem o ritmo de trabalho da prefeitura.

Para especialistas consultados pela RBA, é “natural” essa intimidade do novo prefeito com representantes do setor privado, dado que ele mesmo é oriundo desses mesmos círculos empresariais e tem neles importante base de apoio político. Contudo, a falta de planejamento, de transparência e controle social sobre tais parcerias levantam uma série de dúvidas em relação a essa mistura entre interesses públicos e privados. 

Para o professor e coordenador do mestrado em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC) Klaus Frey, o que preocupa é que esses contatos travados por Doria parecem derivar e depender das próprias relações pessoais estabelecidas por ele, em sua carreira como empresário, e não a partir de um plano que defina prioridades para a cidade, com critérios e diálogo com a sociedade.

Transparência

“Ele é do meio empresarial e, portanto, vai buscar aqueles parceiros que já conhece, em função das suas atividades profissionais. Isso cria um problema na relação entre o público e o privado”, afirma o professor. Ele observa que essa lógica empresarial privilegia o resultado, em detrimento do planejamento, com possíveis efeitos negativos no longo prazo. 

“Ele está trazendo essa filosofia de gestão para o setor público. Isso cria dificuldades e problemas, evidentemente, tanto em termos de transparência, como em termos de acesso ao poder. Surge uma zona cinzenta, a gente não sabe muito bem o que está acontecendo nesses encontros. É um dos problemas fundamentais”, diz Frey. 

A falta de “metodologia” que norteie essa relação da prefeitura com os empresários também preocupa Américo Sampaio, diretor de projetos da Rede Nossa São Paulo. “Sem dúvida, a iniciativa privada pode trazer benefícios para a gestão da cidade. O que chama a atenção é a ausência de metodologia. Quando se tem a articulação do setor público com o privado, os casos exitosos são quando se tem essa metodologia, com critérios claros e transparentes de relacionamento.” 

Sem esses critérios, ele também afirma que essa relação acaba por se basear nas redes de relacionamento do prefeito, implicando em eventuais privilégios para alguns. “As empresas em que, por acaso, o presidente é amigo do Doria vão ter acesso à prefeitura, e as empresas que não são amigas dele, não vão participar?”, questiona Sampaio. 

“O que a prefeitura precisa? É de apoio em infraestrutura? É logística, gestão de fornecedores? Tem um conjunto de temas que precisam de critérios de como o setor privado vai apoiar. Vão se reunir com o McDonalds, por exemplo. Por que? Qual é demanda da prefeitura para a questão da alimentação? Se não ficar claro sobre qual é a demanda, esses encontros acabam ficando um pouco nebulosos, dentro dos interesses da empresa e do prefeito, que não necessariamente são os interesses da cidade”, detalha o diretor da Rede Nossa São Paulo. 

Para ele, essa relação com capital privado deveria estar subordinada aos planos setoriais, com a participação dos conselhos municipais de cada área específica, como saúde, habitação e mobilidade urbana. Sampaio diz ainda que esses problemas devem ser resolvidos “em escala”, e não pontualmente.

“A questão das calçadas, por exemplo. Não tenho recursos para resolver, nem ideias ou projetos. Vou me reunir com a Gerdau, empresas de cimento, de logística e acessibilidade, fazer um fórum de discussão para criar prioridades e então conseguir apresentar as demandas. Assim todo mundo entende o que está acontecendo.”

Em vez de apenas privatizar e buscar parcerias com o setor privado, o professor Frey avalia que Doria tem a oportunidade de demonstrar a sua capacidade como gestor, e deveria buscar aprimorar os serviços públicos. “Um bom gestor deveria, antes de mais nada, se preocupar em gerenciar corretamente os bens da comunidade, e não necessariamente vende-los. Se você vende tudo, parece que está fugindo da gestão desses bens”, explica. 

Ele ressalva, ainda, que pela lógica do mercado, o setor privado investe na busca de retorno, o que vale ainda mais para os investidores estrangeiros. “É evidente que eles não têm interesse em São Paulo. O que eles querem é retorno financeiro, é isso que interessa”. Em vez da racionalidade empresarial, Frey afirma que a administração pública deve se guiar pela racionalidade cívica. 

“Claro que, por outro lado, tem a ineficiência do setor público, mas, nesse caso, ele teria um bom campo para se mostrar efetivo. Melhorar e modernizar a gestão pública. Mas parece que o estímulo é muito mais de se ter um discurso contra o Estado. Prefere privatizar em vez de melhorar, aprimorar e qualificar o setor público.” Frey lembra também que, diferentemente das empresas, o prefeito tem de dialogar com diferentes atores, como Câmara Municipal e setores organizados da sociedade civil, além dos não organizados.