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Na Europa, o alívio da pobreza é uma preocupação. E por aqui?

Enquanto os atuais inquilinos do poder no Brasil atacam as políticas sociais, o mundo discute programas de renda mínima

Arquivo/Agência Brasil

Governo brasileiro não mostra comprometimento com a população e aumenta a pressão sobre o Bolsa Família

Carta Capital – Pela primeira vez em 11 anos o rendimento real médio do trabalho caiu em todas as classes sociais. O recuo aconteceu entre 2014 e 2015 e reduziu a remuneração média em 5%, de 1,95 para 1,85 mil reais, divulgou o IBGE na sexta-feira 25.

Cinco dias depois, anunciou a sétima queda consecutiva do Produto Interno Bruto, de 0,8%, entre o segundo e o terceiro trimestres. No acumulado de 12 meses até setembro, o PIB despencou 4,4% diante do mesmo período medido em 2015.

O governo não mostra, entretanto, comprometimento com medidas de socorro às empresas e à população prejudicadas pela recessão e o arrocho fiscal. Em vez disso, aumenta a pressão sobre o Bolsa Família, crucial para 14 milhões de famílias da camada mais vulnerável da sociedade e um dos programas de transferência de renda mais bem-sucedidos e admirados do mundo.

A atitude contrasta com a preocupação crescente, em todos os continentes, com a necessidade de políticas semelhantes diante da estagnação econômica prolongada, alto desemprego e precarização do trabalho.

No começo do mês, o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário cancelou ou bloqueou 1,12 milhão de benefícios do programa. O governo alegou a necessidade de aumentar a fiscalização por suposta falta de transparência e manipulação nas administrações precedentes, mas especialistas veem tentativas de desmoralização e risco de extinção.

“Não há rigorosamente nenhuma medida nova de ampliação da transparência. O cruzamento de grandes bases de dados é feito desde 2009 e aperfeiçoado a cada ano, mas optava-se por duas etapas para não gerar filas, transtornos à população e acúmulo de trabalho nos municípios.

Em 2014, desligamos 1,2 milhão de famílias. A única diferença agora é no discurso e na forma de divulgação dos dados, com tratamento agressivo e discriminador dos mais pobres”, protestou nas redes sociais a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Tereza Campello. “Espero que não seja um estratagema para reduzir o Bolsa Família e dar mais um golpe contra os vulneráveis.

”O cerco do governo atinge uma iniciativa inspiradora de programas de transferência de renda semelhantes em 52 países, divulgou o Banco Mundial no começo do ano. Em 12 anos, manteve 36 milhões de brasileiros acima da linha de extrema pobreza, números que chamaram a atenção do mundo. Entre 2011 e 2015, o MDS recebeu 406 delegações de 97 países interessados em conhecer a experiência.

Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2015 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Bolsa Família foi essencial para a redução da pobreza no País, por promover o acesso à saúde, à educação e à assistência social.

Enquanto a iniciativa brasileira modelar é pressionada pelo governo Temer e denegrida em editoriais de jornais locais, projetos semelhantes avançam no mundo. Neste ano, Ontário, no Canadá, aprovou recursos para um estudo sobre o assunto. O Senado francês comprometeu-se com um programa piloto de três anos e o governo holandês deu sinal verde para testes.

O Parlamento de Glasgow, na Escócia, aprovou uma moção de apoio à alternativa. Na Alemanha e em Taiwan foram criados partidos políticos em torno da proposta. Na segunda-feira 21, a Finlândia iniciou o teste de um modelo de renda básica de 560 euros mensais para 2 mil beneficiários de seguro-desemprego, isentos de impostos e que serão mantidos quando eles começarem a trabalhar.

“O governo finlandês parece pensar que um rendimento básico pode encorajar os indivíduos a aceitar trabalho em tempo parcial e pouco remunerado, que talvez não pague o suficiente para substituir inteiramente o seguro-desemprego”, analisa o economista Frances Coppola.

A renda básica finlandesa agiria de forma semelhante à combinação dos benefícios de desemprego dos Estados Unidos com o EITC, crédito de imposto federal para trabalhadores de remuneração baixa e moderada ou o regime de crédito universal do Reino Unido, prestes a ser lançado.

A fundação britânica Nesta, de estudos sobre ciência e tecnologia, sugere que, independentemente do aumento do emprego, uma renda básica “pode fornecer uma rede de segurança para quem busca treinamento profissional, o que vale a pena considerar diante das enormes mudanças tecnológicas previstas para as próximas décadas. Permitiria aos cidadãos fazerem maiores contribuições não pagas para suas comunidades e reforçaria o tecido das relações sociais. A diminuição da pobreza em consequência da medida pode proporcionar às crianças um começo de vida muito melhor”.

A Nesta acompanha com atenção o projeto da Finlândia, que investigará se dar os meios básicos para viver vai encorajar os beneficiários a encontrar emprego.

A discussão é familiar aos respeitados técnicos brasileiros atuantes na área. A crítica ao suposto desestímulo ao trabalho pelos programas de transferência de renda, o “incentivo ao ócio” alardeado pelo pensamento conservador nas redes sociais locais, foi rebatida de modo contundente pela pesquisa científica.

“Estudos econométricos recentes e robustos identificaram que o Bolsa Família auxilia a manutenção dos mais pobres no mercado de trabalho formal”, aponta Leticia Bartholo, secretária-adjunta nacional de Renda de Cidadania do MDS, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e do Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo, da Organização das Nações Unidas.

Segundo Coppola, a experiência de renda básica é uma das atividades que visam reformar a Previdência Social para melhor corresponder às mudanças da vida profissional, reformular a seguridade social para incentivar a participação do beneficiário e o emprego, reduzir a burocracia e simplificar o intrincado sistema de benefícios de um modo sustentável no que se refere às finanças públicas.

Na conjuntura atual, de precariedade do trabalho e do bem-estar social, um ingresso mínimo tende a garantir o piso de padrão de vida prometido, mas nem sempre entregue por ambos, chama a atenção o professor de política econômica Robert Skidelsky, da Universidade de Warwick, na Inglaterra, em artigo sobre o assunto. O dispositivo, diz, é uma mistura um tanto ambígua de dois objetivos, o alívio da pobreza e a rejeição do trabalho como propósito definidor da vida.

O primeiro é político e prático, e o segundo, filosófico ou ético. O argumento principal para a sua função de alívio da pobreza é, como tem sido sempre, a incapacidade de trabalho remunerado disponível para garantir uma existência segura e decente a todos.

A fonte da questão ética da renda básica, ensina o economista, é a ideia encontrada na Bíblia e na economia clássica de que o trabalho é uma maldição (ou, como dizem os economistas, um “custo”), empreendida apenas para ganhar a vida.

Como a inovação tecnológica faz com que o ingresso per capita aumente, os cidadãos precisarão trabalhar menos para satisfazer suas necessidades. Por esse motivo, destaca o professor, “os economistas John Stuart Mill e John Maynard Keynes esperavam um horizonte de lazer crescente e a reorientação da vida para longe do meramente útil em direção ao belo e ao verdadeiro. A renda básica fornece um caminho prático para navegar nessa transição”.

Não se imagina um caminho fácil. A preocupação com a suposta ociosidade gerada por um rendimento mínimo obrigatório serviu para derrotar a proposta no plebiscito realizado, em junho, na Suíça.

Uma das causas do aumento do debate e das iniciativas sobre o tema é a explosão da robótica. As estimativas confiáveis sugerem que será tecnicamente possível automatizar entre um quarto e um terço de todos os empregos atuais no mundo ocidental dentro de 20 anos.

No mínimo, isso acelerará a tendência à precariedade dos empregos e da renda. Para o sociólogo Wolfgang Streeck, diretor do Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades, da Alemanha, a generalização da eletrônica e da informática “fará para a classe média o que a mecanização fez para a classe trabalhadora, mas muito mais rápido. O resultado será um desemprego entre 50% e 70% em meados do século”. Os atingidos, diz, serão aqueles que esperavam, por meio de educação cara e disciplinada, desempenho no trabalho em troca de salários estagnados ou em declínio, para escapar da ameaça.

“Os benefícios, entretanto, irão para uma minúscula classe capitalista de proprietários de robôs, que se tornará imensamente rica. A desvantagem para eles é que cada vez mais seu produto não poderá ser vendido, pois poucos terão dinheiro suficiente para comprá-lo.”

Só uma mudança do sistema de geração de renda permitiria pôr em xeque a concentração da riqueza nas mãos dos ricos e excepcionalmente empreendedores, alerta Skidelsky. “Um ganho básico que cresça em linha com a produtividade de capital garantiria que os benefícios da automação fossem para muitos, não apenas aos poucos de sempre.”