golpe dentro do golpe

Brasil e América Latina estão sob ameaça de novas ditaduras, alerta Dilma Rousseff

Em conferência, ao lado de Cristina Kirchner, a presidenta deposta defendeu o voto direto, a taxação de fortunas e de dividendos e a reforma política para a retomada do desenvolvimento

Nelson Antoine/FramePhoto/Folhapress

Cristina Kirchner e Dilma Rousseff participam da conferência “A luta política na América Latina hoje”, organizada pela Fundação Perseu Abramo: forças conservadoras avançam no continente, com retrocessos em direitos conquistados pelas populações

São Paulo – A ofensiva da direita no mundo, especialmente sobre os países latino-americanos, esteve no centro na conferência  A Luta Política na América Latina, realizada na noite de ontem (9) pela Fundação Perseu Abramo no auditório da Casa de Portugal, no bairro da Liberdade, região central de São Paulo. Nos pronunciamentos das ex-presidentas Dilma Rousseff e Cristina Kirchner, vários pontos em comum: os investimentos em políticas sociais, aprovados nas urnas pela maioria do eleitorado mais pobre, a oposição feroz da mídia hegemônica e a rápida retomada do neoliberalismo nos dois países num curto período. “Creio que vale a pena seguir trabalhando. É necessário interpelar a sociedade quanto às políticas que lograram aumento da inclusão social e que estão se perdendo”, resumiu Cristina.

Dilma foi a primeira a falar a um auditório lotado por representantes do PT, do PCdoB, CUT, Fundação Maurício Grabois, Fundação Rosa Luxemburgo, Instituto Nacional Hamilton Cardoso e do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (Clacso) e de movimentos sociais do Brasil, Argentina, Uruguai e Chile, entre outros.

Ela defendeu eleições presidenciais diretas e a taxação sobre grandes fortunas e sobre lucros e dividendos, como base de uma reforma tributária, que torna-se, a partir de agora, principal programa da oposição ao atual governo de Michel Temer (PMDB).

E destacou que a sucessão de situações excepcionais dentro da democracia brasileira não é obra do acaso. “Quando um integrante do aparelho do Judiciário diz: ‘eu tenho convicções, não tenho provas’, ou quando jovens que ocupam escolas e universidades são reprimidos pela polícia, ao contrário de um grupo que invadiu o Congresso pedindo a volta da ditadura, há uma espécie de Estado de exceção. Há um processo de golpe dentro do golpe, para provocar eleição indireta.”

Essa ditadura que ameaça o Brasil e toda a América Latina, disse a presidenta, é condição para a volta do neoliberalismo, que tem como consequências o aumento da ‘concentração de renda, da desigualdade e da exclusão social. “No nosso caso, é por meio de projetos como a PEC 55, da reforma ultraconservadora da Previdência e da flexibilização das leis trabalhistas, que antes tinham o nome de Ponte para o Futuro. Um projeto derrotado quatro vezes nas urnas, que não tem como ser adotado em plena democracia.”

Para ela, o projeto vai muito além de um combate político para destruição de lideranças que podem enfrentá-los, como as perseguições ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “O objetivo é completar o trabalho de FHC, que não conseguiu naquele momento vender a Petrobras, privatizar a Eletrobras, acabar com os direitos sociais, virando a página do Getúlio – o que significa atacar a CLT e as empresas estatais, além de garantir que a maior peça para se fazer política em qualquer país do mundo, o orçamento, seja engessado.”

Ela lembrou que o golpe começou a ser dado de maneira sorrateira, no dia seguinte à sua reeleição, em 2014, quando foi pedida a recontagem dos votos pelo candidato derrotado, Aécio Neves (PSDB), a auditoria nas urnas e a suspensão da diplomação. Esse processo político foi somado à crise internacional, que afetou em cheio os países emergentes.

“E no terceiro mês já estavam pedido impeachment. O centro se moveu para a direita ao se eleger uma proposta liberal radical e conservadora extrema em direitos sociais e valores civilizatórios, num processo que teve na liderança o deputado (cassado) Eduardo Cunha (PMDB). “Se fosse só o Cunha, estava bom. O problema era o grupo do Cunha.”

No seu entender, o retorno do neoliberalismo tem roteiro a ser seguido. O primeiro passo é retirar o poder da população com o impeachment, sem crime de responsabilidade, seguido pela retirada dos direitos da população e da despolitização da luta. “Daí a importância de um inimigo a ser destruído.”

Dilma alertou para o que pode vir a ocorrer no cenário político do país, ao fazer um paralelo com a promulgação do Ato Instituição (AI) 5, que neste mês completa 48 anos e que, segundo avaliou, foi um golpe dentro do golpe de 1964, bem mais radical. “Eles subestimaram a crise econômica, achando que fosse responsabilidade exclusivamente minha, mas os efeitos da crise política são um fator de instabilidade, que leva à crise institucional. E como golpe dentro do golpe tende a ser mais radical, não podemos aceitar uma solução para a crise por cima. E sim por baixo, pelo voto democrático.”

A presidenta destacou que um dos grandes eixos da desigualdade imposta pelo neoliberalismo é a afirmação de que é necessário reduzir os impostos dos ricos para que haja processo de crescimento.

“Nesses 13 anos e meio demos um pequeno passo, valoroso, mas insuficiente. Galgamos o primeiro degrau nesse processo de combate à exclusão social. Nós atacamos a distribuição de renda, mas de maneira alguma conseguimos tratar a distribuição da riqueza, que continuou concentrada em nosso país. Essa era a segunda etapa desse processo, que seria e será o nosso programa daqui para frente”, disse, sob aplausos.

Argentina

A ex-presidenta Cristina Kirchner, que governou o país vizinho de 2007 a 2015, lamentou os retrocessos em apenas um ano de governo de seu sucessor, o liberal Maurício Macri, iniciado em 10 de dezembro de 2015. Entre eles, a retomada de acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), rompidos em 2006, durante o governo de seu marido, Néstor Kirchner. Uma missão do banco visitou Buenos Aires em setembro.

“Em 15 anos de governo popular, promovemos inclusão social, o acesso ao consumo, a criação de 3,5 milhões de empregos formais, valorização do salário mínimo, criação de 19 universidades públicas e gratuitas nas zonas mais densamente povoadas, redução do desemprego para 6,9%, subsídio para taxas de água e luz, tudo isso com déficit fiscal de 1,9%, sendo que hoje é de 5%”, relatou.

Apesar da melhoria nas condições de vida da parcela mais pobre da população, o conservador Macri venceu, apertado, o candidato de Cristina, o peronista Daniel Scioli, que obteve a maioria dos votos apenas na província de Buenos Aires.

Segundo Cristina, o desgaste da sua gestão foi fruto do embate com sindicatos de oposição, que realizaram manifestações e greves, insuflados pela mídia. “Uma correlação de forças em que o setor mais poderoso consegue confundir os setores mais fracos. Um ano depois, nenhuma promessa feita aos trabalhadores foi cumprida e a situação se agravou com os cortes. Há greves de diversas categorias.”

A ex-presidenta argentina acredita que é possível enfrentar o avanço conservador e por isso segue trabalhando. “É necessário interpelar a sociedade, mostrar que é possível governar com políticas que haviam solucionado problemas de décadas, e com soberania.”

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