Controle da força

Debate confronta visão de ativistas, jornalistas e PM em manifestações

Encontro na OAB-SP reúne advogados, jornalistas e PM para discutir cenário repressivo. 'PM é legalista', diz major. 'Perdoe, mas falar em controle da manifestação é abordagem inconstitucional', diz jurista

Arquivo/EBC

Desde junho de 2013, jornalistas cada vez mais também são vítimas da violência da PM durante as manifestações de rua

São Paulo – O major Alexandre Romanek não teve uma manhã de quinta-feira (24) fácil. Com 29 anos de corporação, sendo 22 deles no Batalhão de Choque da Polícia Militar do Estado de São Paulo, esteve por mais de três horas no centro do debate sobre segurança púbica e cobertura de mídia em manifestações de rua.

Acostumado ao ambiente do “teatro de operações”, como o Choque define o território em que atua, dessa vez foram apenas palavras e argumentos a passarem zunindo ao seu redor e ecoar no auditório da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP).

“É preciso deixar de lado o pré-conceito e ideologias político-partidárias”, pediu o major, logo no início da sua fala sobre a atuação da polícia nas manifestações de rua dos últimos anos. Romanek abriu a audiência pública enaltecendo o papel da imprensa e da OAB para a democracia. Ponderou que agir no “teatro de operações” é uma “tarefa árdua”, lamentou as dificuldades impostas pela nova ordem dos movimentos sociais, organizados horizontalmente e sem líderes, e afirmou que o Batalhão de Choque de São Paulo utiliza métodos testados internacionalmente.

“Posso afirmar que o uso hoje de armas não letais é decrescente”, disse, referindo-se às balas de borracha, bombas de efeito moral e spray de pimenta. E enfatizou que há, sim, capacitação dos policiais para o uso desses equipamentos – informação curiosa posta em xeque pelo histórico de cenas protagonizadas pela PM de São Paulo.

O major repetiu diversas vezes que “a polícia está de portas abertas” para receber críticas e jornalistas que sofrerem danos “de atitude individualizada”. E tal qual o comandante-em-chefe, governador Geraldo Alckmin, costuma explicar em entrevistas, afirmou que a corporação “não compactua com desvios de finalidade da tropa”, é “legalista” e tenta sempre acertar e melhorar. “Não há nenhuma irregularidade que chegue até nós e que não seja apurada”, afirmou, lembrando que a PM paulista tem 180 anos e não foi criada na ditadura, como alguns dizem.

Segundo ato

Quando o mediador do debate, Martim de Almeida Sampaio, coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, passou a palavra para o advogado e jurista Pedro Serrano, sentado à esquerda do major Romanek, foi previsível imaginar que o teatro de operações ficaria quente.

Com a fala pausada, Serrano começou dizendo que faria considerações mais teóricas, o que de fato cumpriu, ainda que a voz mansa tenha logo sido substituída por um discurso enfático. Voltando ao ponto do major que havia citado a dificuldade da falta de liderança nos movimentos sociais, o jurista observou que isso é uma tendência da pós-modernidade.

“É evidente que os movimentos tendem cada vez mais a se articular em rede. A própria sociedade é hoje assim, mais complexa. A questão é como dialogar uma instituição hierárquica como a PM e movimentos fluidicos. A democracia que nasceu no mundo era burguesa, só a elite podia interceder nas instâncias de poder. Chegamos à democracia que temos hoje por causa dos movimentos populares, sem os movimentos sociais você não garante o avanço dos direitos”, disse Pedro Serrano.

O jurista retomou outra fala do major Romanek, que havia definido como “controle de manifestação” as ações e táticas do Choque. “Me perdoe, major, falar em ‘controle da manifestação’ já é uma abordagem inconstitucional. A forma de abordagem da PM é absolutamente equivocada no discurso. A função da PM não é controlar multidões, é defender e proteger aquele grupo que está se manifestando. É o que diz a Constituição”, afirmou, puxando a cortina do teatro de operações do debate.

Professor de direito constitucional da PUC-SP, Pedro Serrano ponderou que a democracia se constrói com a observância da lei e também com a inobservância. Nesse momento, Romanek cerrou levemente os olhos, como que para interpretar o que viria. “Nelson Mandela lutou contra o racismo, mas o racismo era legal. É assim que a democracia avança. Não é o que a gente gosta, são os fatos”, explicou, citando que o direito ao voto das mulheres e dos negros também só foi conquistado depois de muita luta e nem sempre pacífica. “O que é mais importante, a janela quebrada de um banco ou a integridade física das pessoas?”, questionou.

Terceiro ato

Sentada à direita do major, Camila Marques, advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da organização não governamental Artigo 19, tomou a palavra e deu sequência à cena. Com a fala veloz e calibrada, lembrou que as violações ao direito de protesto não começaram em junho de 2013. “Muito antes, a PM de São Paulo já age com violência e desrespeito aos manifestantes. Temos visto o uso desproporcional da força, quando não há necessidade, apenas para dispersar manifestantes que estão ali de modo pacífico. Não é legítimo usar violência como argumento para proteger o trânsito. Temos visto muita violência contra pessoas acuadas, pessoas em postos de gasolina, pessoas que estão só passando pelo local”, disse Camila.

Ao seu lado, o major Romanek tomava notas em um caderno.

A representante da Artigo 19 foi adiante, criticando as detenções arbitrárias, as prisões para averiguação, os flagrantes forjados, a ausência de identificação na farda dos policiais, intensidade e direção diferentes do jato d’água a depender do cunho ideológico da manifestação e os inquéritos usados como ferramenta de monitoramento ideológico de pessoas e movimentos sociais.

E como para lembrar que o tema do debate era a violência sofrida pelos profissionais da imprensa durante as manifestações, Camila Marques disse que os jornalistas não viraram alvo por acaso. “Na verdade, o Estado quer que a sociedade não conheça o modo como a polícia trata o manifestante. Quando se atinge o comunicador, se atinge o direito de toda a sociedade de saber o que está acontecendo.”

Ao seu lado, o major Romanek seguia tomando nota.

Para encerrar sua participação, Camila ponderou que as normativas da PM de São Paulo que regulam o uso de armas não-letais são sigilosas, e pinçou a fala do major do início do debate, quando ele afirmou que a PM é legalista. “A PM deve ser legalista, obviamente. Mas alguém conhece as normativas da PM? Se é mesmo legalista, deve tornar pública para que a realidade possa ser cobrada. O Estado ainda não compreendeu que a política de segurança pública é como qualquer outra e deve ser transparente.”

Último ato

Únicos jornalistas na mesa do debate, Patrícia Campos Mello, do jornal Folha de S.Paulo, e Lourival Sant’Anna, de O Estado de S. Paulo, apresentaram o lado de quem está no teatro de operações, não para atuar, mas para narrar.

Patrícia disse que a expressão “controle da multidão”, usada pelo major Romanek, vem do inglês riot control, porém, riot significa tumulto e não multidão. “Isso já mostra de onde parte a ideia errada de que a manifestação é tumulto”, afirmou. Dizendo que nem deveria acontecer a violência entre PM e imprensa, a repórter definiu como um absurdo o nível de agressão contra jornalistas num país supostamente democrático. “Eu vi PMs no Brasil mirando acima da cintura.”

Sant’Anna observou que têm sido comum incidentes onde policiais confiscam os equipamentos dos jornalistas, como gravadores e máquinas fotográficas. Das manifestações que acompanhou, analisou que 99% do ato é pacífico e que a violência, quando há, é causada por uma minoria insignificante. O jornalista disse que os chamados black blocs se utilizam do modo com a imprensa cobre as manifestações, com mais destaque para a violência do final do que para todo o ato pacífico.

“A edição da reportagem tem de refletir o que realmente ocorreu. E não é o caso da nossa cultura jornalística, que vai em busca do extraordinário, o que acaba sendo a violência. Mas uma manifestação pacífica de 200 mil pessoas também deveria ser extraordinário.”

Para ele, até mesmo termos usados pela imprensa, como “vândalos” ou “terroristas”, faz com que os manifestantes “se virem” contra os jornalistas. “A isenção deve ser um fim que sabemos ser inalcançável, mas que devemos perseguir.” Lourival citou, por fim, a crise dos veículos de comunicação, a demissão cada vez maior dos jornalistas experientes e a diminuição de recursos para equipamentos de proteção.

“Tudo isso são fragilidades da nossa profissão e estamos certamente mais vulneráveis. São problemas nossos, mas quem acredita que a imprensa é importante para a democracia, pode também se envolver.”

Ao final do debate, Camila Marques e o major Romanek conversaram por alguns instantes fraternalmente. A cena já havia ocorrido instantes antes, ainda sentados à mesa. Ao que um espectador da plateia comentou:

“Essa cena deveria ser fotografada. É isso aí. vocês vão ter que conversar.”

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