posse nesta segunda

Cármen Lúcia: a ministra que comandará o STF pelos próximos dois anos

Discreta e avessa a discussões exacerbadas, ela tem um outro lado: o que fala o que pensa. Entre advogados e colegas, a pergunta que se faz é: qual desses lados vai imperar ao assumir a Suprema Corte?

Fernando Frazão/Agência Brasil

“Sou de uma geração que lutou para eleger de presidentes de diretórios acadêmicos a prefeitos, governadores e presidentes”

Brasília – Aos 62 anos, a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, que assume a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta segunda-feira (12), é uma mineira de hábitos simples. Ela não pinta os cabelos, usa roupas discretas, faz questão de dirigir o próprio carro, um Astra, e costuma cumprimentar com aceno simpático os funcionários que encontra nos corredores do tribunal. Além de ser considerada bem preparada juridicamente para os votos que relata, é tida como uma julgadora que evita debates exacerbados e grandes discussões com os colegas durante as sessões. Mas, às vezes contraditoriamente, gosta de proferir frases de efeito e duras sobre o que pensa. Por isso, assume em meio a dúvidas sobre como, de fato, será o seu comportamento à frente da mais alta Corte do país.

Em tempos de julgamento das ações da Lava Jato, Cármen Lúcia presidirá o STF justamente no ano em que completa 10 anos no tribunal. Do tipo considerado “casada com o trabalho”, estudiosa dos casos que relata e das novas jurisprudências, ela é defensora dos direitos das mulheres e tem sido cautelosa em decisões que venham a representar perdas para os trabalhadores.

Ao mesmo tempo em que tem várias características da sua personalidade elogiadas por magistrados e operadores de direito, também é vista por setores da advocacia, juristas e colegas como sinal de que os tempos serão mais duros nos próximos dois anos, no STF. Embora estes últimos admitam que, apesar da maior rigidez, possam ser dias bem mais céleres no julgamento dos processos.

Numa das suas declarações mais polêmicas, proferida em outubro passado, quando o STF autorizou a prisão do então senador Delcídio do Amaral (sem partido), Cármen Lúcia mexeu com o brio de políticos diversos, o que lhe rendeu protestos de cidadãos. A ministra afirmou, numa frase longa, entre outras palavras, que “na história recente da nossa pátria, houve um momento em que a maioria de nós, brasileiros, acreditou no mote segundo o qual uma esperança teria vencido o medo. Depois, nos deparamos com a Ação Penal 470 e descobrimos que o cinismo tinha vencido aquela esperança. Agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo. O crime não vencerá a Justiça”.

Uma das manifestações mais emblemáticas foi a longa carta encaminhada a ela pelo bispo dom Orvandil Moreira Barbosa, da diocese Brasil Central, de Goiás, e professor universitário. Dom Orvandil disse que “como cidadão e como povo me sinto ofendido e agredido em minha esperança e em minha fé com essa sua fala, para mim irônica e sem nenhuma relação com o mensalão da mídia, com muitos casos dúbios e influenciados pela opinião publicada”. (…) “A senhora carregou sobre a ironia sem nexo ao afirmar que ‘agora o escárnio venceu o cinismo'”.

Em outro trecho, ele afirmou: “A minha ofensa também vem do fato de a senhora misturar ironicamente fatos e valores sem nenhuma relação, sendo que a esperança realmente venceu o medo e sempre vencerá as vilanias da classe dominante, principalmente da rapinagem dos poderosos internacionais, que atuam por meio de jagunços nacionais. Pior, a sua referência de falso senso de oportunidade choca por estabelecer nexos irreais entre um senador atual, preso acusado de atrapalhar investigações, com toda a força da esperança de um povo”. Cármen Lúcia, desta vez, nada comentou.

Argumentou posteriormente, numa entrevista para TV, que a declaração saiu depois de ter ficado estarrecida com gravações onde o então senador fazia ilações sobre a possibilidade de conseguir apoio de ministros do tribunal num provável julgamento. “Não se faz favor usando a toga”, declarou, para acrescentar: “Estou há dez anos no Supremo e nunca veio ninguém falar comigo sobre algum processo, nunca recebi nenhuma proposta indecorosa. Não sei se por causa do meu jeito, mas comigo isto nunca aconteceu”.

No dia em que foi confirmada pelo plenário como substituta do ministro Ricardo Lewandowski para o próximo biênio do STF, a ministra protagonizou outra polêmica, ao dizer que gostaria de ser chamada de “presidente” e não “presidenta”, porque “fui estudante e sou amante da língua portuguesa”, numa referência à presidenta afastada da República, Dilma Rousseff. Desagradou desde militantes e simpatizantes petistas ao ex-ministro da Educação do governo Dilma, Renato Janine Ribeiro, que citou um conterrâneo dela, Carlos Drummond de Andrade, como alguém que defendia o termo “presidenta”, para alfinetá-la.

“Gosto da ministra Cármen Lucia, mas, entre o português dela e o de Carlos Drummond de Andrade, fico com o do poeta – que, na sua tradução de Choderlos de Laclos, usa ‘presidenta’ sem nenhum problema. Observação: eu prefiro usar presidente, mas respeito Drummond, um de nossos maiores escritores”, afirmou o ex-ministro. “Acusar quem usa presidenta de ignorante é, isso sim, ignorância. Mas cada um usa a que prefira. Livre para Dilma, livre para Cármen”, acrescentou. Também nada foi respondido pela magistrada.

O professor de português Pasquale Cipro Neto também criticou a postura e a entonação da magistrada. Em artigo intitulado “Data venia, Excelência, o cargo é de presidente ou presidenta”, Pasquale argumenta: “O que não se pode, de jeito nenhum, é ditar regras linguísticas totalmente desprovidas de fundamento técnico, mas foi justamente isso o que mais se viu/ouviu/leu desde que Dilma manifestou a sua preferência por ‘presidenta’, forma que não foi inventada por ela”. O colunista lembra que o termo  está registrado na edição de 1913 do dicionário de Cândido de Figueiredo, como “neologismo”.

Tempos quentes

“Teremos tempos quentes pela frente”, disse o advogado Ruben Antonio Furtado, com escritório em Brasília. Em tom diplomático, ele evitou afirmar se os tempos “quentes” serão quanto à administração ou aos julgamentos do tribunal, mas ressaltou achar que o tom rigoroso da ministra terá prós e contras, embora a certeza de que “desta vez, haverá uma magistrada preparada no comando da casa”.

A forma irônica de falar do advogado é uma comparação implícita entre o estilo de Cármen Lúcia e o do ex-presidente do STF, Joaquim Barbosa, que ao contrário dela e do atual presidente, Ricardo Lewandowski, era considerado em reservado nos gabinetes do tribunal um magistrado que teve boas notas nos concursos em que foi aprovado mas, por outro lado, tinha parco preparo jurídico e muitos processos acumulados atrás de si.

Como pontos favoráveis da magistrada, Furtado cita seu preparo intelectual e também desabafos célebres, conhecidos entre os servidores do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nos tempos em que a ministra presidiu o órgão em 2012 que delineiam bem o seu perfil. “Ninguém aguenta essa mulher”, esperneou um analista judiciário que pediu transferência para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), na época. A frase “ninguém aguenta” não dizia respeito a cenas de grosseria nem a falta de educação por parte de Cármen Lúcia. Mas sim, à alta carga de trabalho imposta por ela. O que terminou sendo revertido em fator positivo para a sua gestão.

No gabinete da ministra são conhecidos os plantões que costuma marcar com toda a equipe quando acha que está com processos de sua relatoria atrasados. Também ficou notória a história de um servidor que, durante um destes plantões convocados para o TSE, chegou de bermuda e com sinais de que havia ingerido bebida alcoólica. Foi sumariamente exonerado dias depois, mesmo exercendo um cargo de confiança. Por ser tido como servidor exemplar, que tinha assessorado vários antecessores da presidência do tribunal e não tinha a obrigação de trabalhar naquele plantão, outros ministros pediram para que tivesse suspensão mais branda. Não adiantou. Cármen Lúcia não admitiu mais tê-lo como subordinado.

“Todos que trabalham com Cármen Lúcia gostam, sabem que ela estimula os seus servidores a fazer concurso e a melhorar na carreira, mas por outro lado é preciso saber entrar no ritmo dela”, contou Fernanda Soares, uma técnica legislativa que ficou lotada no gabinete da magistrada, num dos primeiros anos após a ministra tomar posse, e diz admirar seu estilo.

No início deste ano, o pai da ministra, Florival Antunes Rocha, 98 anos, desistiu de uma ação sobre expurgos dos planos econômicos para que a filha pudesse participar do julgamento sobre o tema, que está parado há mais de dois anos no STF. Florival tinha poupança na época da inflação, quando perdeu dinheiro com esses planos. Mas como o caso entrou no rol do instrumento de repercussão geral – segundo o qual a decisão do Supremo a respeito passará a valer para todas as outras nos tribunais do país – a demora para entrar na pauta do tribunal estava atrapalhando a vida de milhões de brasileiros.

A atitude da ministra rendeu-lhe elogios de entidades de defesa dos consumidores e impetrantes das ações sobre o caso, que é considerado, de longe, o maior nas mãos do STF, com potencial de perdas de até R$ 150 bilhões para os bancos e repercussão sobre mais de 800 mil processos em andamento no país.

O imbróglio todo se dava porque também tinham se declarado impedidos do julgamento os ministros Edson Fachin, Luiz Barroso e Luiz Fux. E com Cármen Lúcia também impedida, por causa do pai, não havia quórum suficiente no tribunal.

Corporativismo e foco

Posições de Cármen Lúcia sobre direitos e conquistas das mulheres têm sido elogiadas. Ela defende, por exemplo, que as presas sejam retiradas poucas semanas antes de dar à luz de penitenciárias e delegacias para que nenhuma criança filha de presidiária nasça aprisionada. Também é favorável a leis mais rígidas sobre o estupro e costuma fazer visitas aos presídios para ver a quantas anda o acompanhamento da execução criminal no país.

A magistrada é considerada uma das poucas ministras sem postura corporativista, embora já tenha atuado para defender direitos do Judiciário e de atuar como uma leoa quando seu interesse é em algum anseio relacionado à carreira. Teria sido assim, conforme a versão de alguns políticos e magistrados de Minas Gerais, quando decidiu se articular para conseguir uma vaga no STF.

Uma advogada aposentada, ex-mulher do dono de um conhecido escritório de direito tributário com sedes em São Paulo e Brasília, contou que Cármen começou a campanha para ser ministra do STF décadas antes e construiu toda uma trajetória política para isso, desde o governo de Itamar Franco em Minas Gerais – período em que foi procuradora no Estado. “Ela sabia que poderia existir uma oportunidade e começou a se esforçar para ser convidada para eventos jurídicos, participar de todos os jantares de membros da Corte e encontrar os mais diversos motivos para vir a Brasília e conversar com ministros. Tornou-se íntima de muitos deles e não escondia que estava no páreo para alguma indicação”, ressaltou.

Em sua defesa, o jurista Dalmo Dallari, assim que soube da decisão da Corte de tê-la como a nova presidente, se manifestou. “Ela é brilhante. É uma juíza independente, de honestidade absoluta e com enorme sensibilidade constitucional.”

Em relação às suas decisões no Supremo, foi a única integrante do colegiado, ao lado do ministro Joaquim Barbosa, em 2011, que votou a favor da constitucionalidade total da Lei da Ficha Limpa. Foi uma das primeiras a criticar a prática do caixa 2 e a dizer que se trata de um crime, no colegiado, durante uma sessão. Além disso, é da opinião que não cabe ao Judiciário controlar o poder do Estado de intervir na economia, frase que já repetiu diversas vezes.

Quando questionada sobre o fato de ser correto o magistrado ter ou não opinião política, ela tem sido dúbia. Diz que não acha correto, mas que considera possível ao julgador ter, sim, uma “visão de mundo” e que a seu ver, o que muitos entendem como posição política muitas vezes é, no seu entendimento, a expressão de sua “visão do mundo”.

Cármen Lúcia teve votos considerados contraditórios entre ativistas do direito humano à justiça. Por exemplo, votou favorável à prisão de réus já nas condenações em segunda instância e sem que a sentença tenha sido considerada transitada em julgado (tema que ainda é objeto de julgamento final no STF) – o que para muitos afronta o direito de defesa, vai prejudicar os mais pobres e agravar a situação de casas de detenção. Por outro lado, votou pela autorização do aborto em caso de fetos anencéfalos, das pesquisas com células tronco, da união estável entre homossexuais e da adoção de crianças por homossexuais, entre outros casos.

“Minha grande briga sempre foi para que as pessoas tenham respeitados seus direitos, até por eu vir das Gerais, uma região onde as pessoas precisaram brigar demais para conseguir sobreviver”, já afirmou.

Outra característica de sua atuação enquanto magistrada é a que teria desenvolvido ao refletir sobre a tese, levantada por um dos decanos da Corte, Marco Aurélio de Mello, de que não adianta se exasperar durante os votos nas sessões porque “ninguém convence ninguém nos debates durante as sessões”.

Relatora da ação polêmica sobre o direito à publicação de biografias mesmo quando não autorizadas pelos biografados, ela considerou – e foi acatada pelos pares – que apesar do argumento do Código Civil de que “a vida privada da pessoa natural é inviolável”, a exigência de autorização prévia para a publicação de qualquer obra se configura em censura. E lembrou que a Constituição garante “o direito ao acesso à informação e à liberdade de expressão”. Chamou a atenção, no julgamento, por incluir no voto mais um dos seus trocadilhos, ao escrever e repetir publicamente: “Cala a boca já morreu”.

Fica presente o temor de que o STF passe a ser comandado por uma ministra que nem sempre relativiza os dois lados (no caso dos embates que envolvam políticos), demonstra ser pouco paciente com os subordinados que saiam dos trilhos e mais rigorosa do que o normal na aplicação da lei. Se isto será bom ou não para o país, falta pouco tempo para os brasileiros saberem.

Frases

O direito é um agente de libertação permanente

“Não há nada que ligue o ministro do Supremo a quem o indicou para o cargo porque a toga não é desse ministro, é do Brasil. O STF não se acovarda e a prova disso está nas decisões do colegiado”

“O juiz tem suas visões de mundo. Não são opções políticas, costumo dizer que são visões de mundo”

“A função do juiz é dificílima. A sensação de lidar com a injustiça é um sofrimento”

“Quem ganha, festeja; quem perde, reclama”

“Não basta aplicar o Direito: é indispensável ouvir a sociedade para entender a razão dos descontentamentos”

“Na história recente da nossa pátria, houve um momento em que a maioria de nós, brasileiros, acreditou no mote segundo o qual uma esperança teria vencido o medo. Depois, nos deparamos com a Ação Penal 470 e descobrimos que o cinismo tinha vencido aquela esperança. Agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo. O crime não vencerá a Justiça”

“Defendo que seja debatida a questão de um mandato para os ministros do Supremo. Sou favorável a isso e acho que o tema precisa ser muito bem discutido”

“O Brasil tem muitas humanidades. Temos a pessoa que precisa andar dez dias para chegar a um posto de saúde e a pessoa que vai diariamente para o trabalho de helicóptero”

“Não demonizo a política, acho importantíssima a política. É a política ou a guerra. Sou de uma geração que lutou para eleger desde os presidentes dos diretórios acadêmicos das faculdades até os prefeitos, governadores e presidentes”

“Desacreditar as instituições não conduz a melhoria para a sociedade. Tem de se julgar cada caso, dando o devido direito de defesa para se decidir da melhor forma”