eleições 2016

Erminia Maricato: eleições deste ano podem ‘reinventar’ processo democrático

Frente à crise política, urbanista acredita que São Paulo terá oportunidade para escolher um prefeito que recupere a descentralização de decisões, a democracia direta e o orçamento participativo

Reprodução/TVT

Erminia: ‘Nós temos uma impossibilidade de resolver o problema de mobilidade da metrópole só com uma política municipal’

São Paulo – A crise política, a consolidação do golpe parlamentar no país e as eleições municipais deste ano são uma mistura com resultados difíceis de calcular. Para as cidades que escolherem bem os seus prefeitos, no entanto, as eleições podem ser uma oportunidade de resgatar a democracia no plano municipal. É o que acredita a professora de urbanismo da Faculdade de Arquitetura da USP Erminia Maricato. “Do meu ponto de vista, nós podemos reinventar o processo democrático no país a partir das eleições municipais. Isso porque nós conseguimos construir um período de governo democrático que distribuiu renda por meio dos governos municipais”, afirma.

“Acredito que precisamos recuperar a importância da descentralização das decisões do poder local, a democracia direta, especialmente o orçamento participativo, especialmente o Favela Bairro, quer dizer, transformar as favelas e bairros periféricos em áreas saneadas, em bairros dignos, com todos os equipamentos de infraestrutura”, diz a professora em entrevista à RBA na quarta-feira (24).

A professora, que foi Secretária de Habitação na gestão da prefeita Luiza Erundina (1989-1992), coloca como condição fundamental para a melhoria da vida na cidade uma gestão metropolitana articulada com os interesses do cidadão. “Nós temos uma impossibilidade de resolver o problema de mobilidade da metrópole só com uma política municipal”, afirma.

Ao longo da entrevista, a questão da mobilidade é recorrente, e a importância de se prover infraestrutura para reduzir a exclusão e os problemas de desigualdade também é destacada. A professora acredita que seja quem for o próximo prefeito, há avanços que não poderão retroagir, como a questão da prioridade para o transporte público. “Fala-se da violência dos homicídios, mas ninguém fala da violência dos automóveis, o automóvel é uma tragédia para as nossas cidades”, afirma.

O quanto as eleições municipais deste ano são importantes para o futuro de São Paulo?

Elas são algo fundamental na orientação do futuro da nossa metrópole, mas as eleições são municipais, e São Paulo é uma metrópole formada por 39 municípios. Nós temos o Estatuto da Metrópole, que foi votado há pouco tempo, mas é mais uma lei. Nós temos muita legislação urbanística que infelizmente é desconhecida pelo Judiciário e Ministério Público principalmente, mas também por toda a sociedade de um modo geral, até por executivos e legislativos. E na nossa cidade, se você pegar o problema da mobilidade, vai ver que 70% do emprego fica no centro expandido do município e a maior parte dos trabalhadores não mora no município. E nós temos uma impossibilidade de resolver o problema de mobilidade da metrópole só com uma política municipal.

A mobilidade é o mais importante?

Isso é muito importante, é a população mais pobre que no fundo viaja muito tempo para chegar no local de trabalho. Mas não é só mobilidade. Todos os problemas, enchentes e drenagem, falta de saneamento, que está relacionada com essas epidemias atualmente, a questão da coleta de lixo, a própria questão da habitação, meio ambiente – nós temos uma área de proteção aos mananciais no sul da metrópole e nesse caso o município até que tomou algumas medidas interessantes para a preservação dessa área, mas ela é metropolitana, não é só municipal.

“É importante que a gente cobre o governo estadual e os governos municipais a institucionalizar uma gestão metropolitana e sair dessa política paroquial em que cada um atira para um lado”

Nesse primeiro momento eu quero dizer que nós temos que votar em bons prefeitos, mas exigir depois um modelo formado de administração e gestão metropolitana, em que você teria que ter necessariamente parceria do governo estadual e dos prefeitos municipais.

A mobilidade não tem integração para quem mora nesses municípios. Os sistemas da EMTU e SPTrans não conversam. O que falta para as autoridades se entenderem em benefício da população?

Sem dúvida, o problema é metropolitano, isso para não dizer que você tem hoje uma macrometrópole que vai de Campinas até a Baixada Santista e tem gente trabalhando e morando entre esses municípios. É importante que a gente cobre o governo estadual e os governos municipais a institucionalizar uma gestão metropolitana e sair dessas política paroquial em que cada um atira para um lado. É comum você ver uma prefeitura fazer alguma coisa que leva enchente para o município vizinho.

Como urbanista, qual em sua opinião o principal desafio do próximo prefeito da cidade?

A questão da eleição municipal se coloca em um momento delicado para o país e a gente está enxergando pouco a importância dela. Quase 90% da população brasileira está em cidades e isso diz respeito ao nosso dia a dia e dá para a gente ter uma melhora fundamental na nossa vida por meio das políticas locais. E infelizmente está se discutindo pouco a importância desta eleição municipal. Do meu ponto de vista, nós podemos reinventar o processo democrático no país a partir das eleições municipais. Isso porque nós conseguimos construir um período de governo democrático que distribuiu renda por meio dos governos municipais. Onde é que começou o orçamento participativo? Onde que se iniciaram todas as propostas, inclusive, com a ação direta de cidades democráticas populares? Foi nos governos locais. Isso precisa ser retomado, até porque tínhamos pouco dinheiro e inventamos muito, ficamos conhecidos no mundo inteiro por um ciclo virtuoso de política urbana, de poder local, de urbanização de favelas, de produção de moradias com participação social, boa arquitetura.

Mas e o desafio?

Eu acho que o maior desafio é, em primeiro lugar, mostrar que os problemas são mais metropolitanos e sem isso não dá para resolver o problema da mobilidade. Não dá para resolver o problema da moradia dentro do município de São Paulo, nem o problema do meio ambiente. O prefeito de São Paulo é cobrado por coisas que não são dele. Às vezes vem um morador de Osasco ou de Guarulhos cobrar o prefeito de São Paulo por alguma coisa que não é responsabilidade dele.

E também há uma dificuldade em resolver os municípios dormitórios. E em São Paulo você tem uma concentração de uma classe média, com alta concentração de renda. Alguns anos atrás, constatei que 23% dos chefes de família do Brasil todo que ganhavam mais de dez salários mínimos moravam no município. É uma concentração de renda forte, é uma população que mora em condomínios e é muito ligada à demanda de privilégios. Historicamente, é uma população acostumada a não enxergar, a negar o problema da pobreza e da desigualdade – é uma população muito voltada para o próprio umbigo.

“Do meu ponto de vista, nós podemos reinventar o processo democrático no país a partir das eleições municipais. Isso porque nós conseguimos construir um período de governo democrático que distribuiu renda por meio dos governos municipais”

Mas não é toda essa classe média que é assim. Hoje você tem jovens da classe média, razoavelmente bem situados em termos de renda, que estão aí defendendo a humanização da cidade, a abertura da Avenida Paulista, as ciclovias, a prioridade para o transporte público.

Uma outra dificuldade para o próximo prefeito ou prefeita é que por causa dessa invisibilidade do tamanho da região metropolitana e dos problemas que ela tem, você tem também conflito com o Ministério Público e Judiciário por um problema de falta de compreensão – e eu tenho ousadia de dizer isso da dimensão dos problemas que a cidade tem. Se eu constatar que boa parte dos moradores desses municípios moram ilegalmente – nós temos quase 2 milhões de pessoas morando em áreas de proteção de mananciais –, se eu vier com uma medida de força para que a lei seja cumprida eu tô ignorando toda a correlação de forças que criou essa desigualdade, segregação, essa ilegalidade. Eu mesma fui secretária da Habitação e vi o que é ter um Tribunal de Contas do Município que faz oposição à prefeitura. Isso aconteceu no governo de Luiza Erundina do qual eu fazia parte.

E acontece hoje também, basta ver o embate entre a prefeitura e o TCM em torno da licitação de transportes públicos na cidade…

Hoje sem dúvida, eu vejo medidas do Ministério Público que me assustam, como por exemplo tentar vetar a abertura da Paulista para pedestres. Para mim é comum perceber que há promotores públicos que desconhecem a legislação urbanística. Essa legislação no Brasil… Outro dia eu fui dar uma aula na escola de magistratura aqui de São Paulo e fiquei sabendo que em escolas de Direito ela não é obrigatória, o que é muito grave.

E os riscos que a cidade corre dependendo de quem ela eleger prefeito?

Isso é uma tragédia. Vou dar um exemplo da última gestão: é muito comum você ver certos gestores e mesmo vereadores articulados com interesses empresariais, não gerais, mas de determinadas empresas. E a partir daí a cidade é assaltada com uma megaobra que não é prioridade. Esse foi o caso do túnel Águas Espraiadas, que o ex-prefeito deixou licitado para o atual prefeito. O projeto do túnel não permitia a circulação de ônibus, era só para automóveis. E a previsão da obra era de R$ 3 bilhões, é mais do que o município aplica em Saúde. Era para ser custeado pela operação urbana, mas uma lei específica que por sinal é ilegal definiu que se não houvesse recurso da operação urbana os recursos iam sair da receita municipal. Eu chamo isso de assalto. Não é prioridade do município e contraria o Plano Diretor, que diz que a prioridade é o transporte coletivo. A lei federal diz que a prioridade é ciclovia, pedestre, depois o transporte coletivo e se essa gestão não tivesse segurado esse túnel – fizemos um abaixo assinado com doutores da USP na área de planejamento urbano –, mas nós conseguimos barrar esse túnel, aeroporto em área de proteção dos mananciais, quer dizer, de alguma forma a gente conseguiu fazer com que a cidade não fosse dilapidada no seu orçamento.

A obra viária com foco no automóvel deixou de ser prioridade?

Não só deixou, porque é transporte individual, que agride o meio ambiente, agride a qualidade do ar, agride a racionalidade do transporte, porque é preciso transportar mais gente por veículo, é absolutamente irracional colocar a prioridade em cima do transporte individual. Mas isso é realidade no país, nas cidades de porte médio, é um rodoviarismo baseado no automóvel.

“Hoje sem dúvida, eu vejo medidas do Ministério Público que me assustam, como por exemplo tentar vetar a abertura da Paulista para pedestres. Para mim é comum perceber que há promotores públicos que desconhecem a legislação urbanística”

Em um primeiro momento, quando você tenta frear o espaço que o automóvel tem, o comportamento do automóvel, que mata – foram 42 mil pessoas em 2013, é uma guerra civil, fala-se da violência dos homicídios, mas ninguém fala da violência dos automóveis, o automóvel é uma tragédia para as nossas cidades.

Ao mesmo tempo é difícil começar a instituir medidas que freiam a liberdade do automóvel, mas eu acho que isso está dado já em São Paulo e vai ser muito difícil voltar atrás.

O Plano Diretor e outras leis de caráter urbanístico, que são relativamente novas, vão funcionar como uma proteção frente a um prefeito que queira mercantilizar a cidade?

Eu trabalho com legislação urbanística há mais de 40 anos. E acompanho as cidades no Brasil e no mundo, mas especialmente no Brasil. E digo que não há lei que proteja o interesse coletivo no Brasil. Nós temos no país um conjunto de leis avançadíssimo, por exemplo, o Estatuto da Cidade, que é desconhecido pelo judiciário e pelas escolas de Direito. Isso nos leva a uma esquizofrenia. Por exemplo: você tem o direito à moradia na Constituição, ele é absoluto lá, na forma como ele está inscrito. O direito à propriedade é relativizado pela função social da propriedade na Constituição, no Estatuto da Cidade, nos planos diretores todos que eu acompanhei. No entanto, na hora dos juízes julgarem a reintegração de posse que os proprietários pedem, às vezes, de edifícios que ficaram vazios anos e anos e depois são ocupados por muito tempo, como aconteceu no Pinheirinho, parece mais regra do que exceção os juízes darem o despejo às vezes de uma forma incrivelmente trágica, de colocar nas ruas, como vimos acontecer no centro de São Paulo, pessoas idosas e crianças, mulheres gestantes, como se essas pessoas fossem criminosas, como se elas não estivessem desesperadas na hora em que fazem essas ocupações em prédios vazios e que têm dívidas milionárias de IPTU.

O projeto do Arco do Futuro é viável, é um bom projeto para São Paulo?

Existe uma luta em torno da visibilidade dos significados, dos signos da cidade. Essa ideia de que você vai fazer uma obra síntese, uma obra que vai marcar, uma olimpíada da vida, que vai deixar um legado. De fato, fica muita coisa construída, mas construíram o VLT e Metrô nas áreas mais ricas do Rio de Janeiro. Eu acho isso um crime impressionante. A população sofre demais nos transportes públicos.

Existe uma máquina de alienação capaz de fazer as mentes acreditarem nessas propostas. O que cria esses grandes projetos são interesses que ligam empresários imobiliários, incorporadores, construtores, proprietários, financiadores. Hoje você olha para a marginal do Tietê e vê lá uma série de terrenos, ou edifícios que estão lá se deteriorando, porque já estão vazios, esperando o aporte do recurso público. Se as operações urbanas se custeassem a prefeitura poderia investir onde precisa para a cidade ficar menos desigual.

Mas não é assim. Se você pegar essas grandes operações, elas sempre dizem que vão viabilizar a arrecadação por parte do governo, do poder público, que vai fazer a infraestrutura com o dinheiro que vai ser arrecadado. Mas eu não vi uma operação urbana neste país que não comeu dinheiro público. Nós temos uma super bibliografia sobre isso, ótimos livros, como é o caso do livro da (arquiteta) Mariana Fix, Parceiros da Exclusão, que mostra que a parceria público-privada foi na verdade para expulsar a população pobre de Águas Espraiadas.

“Fala-se da violência dos homicídios, mas ninguém fala da violência dos automóveis, o automóvel é uma tragédia para as nossas cidades”

Arma-se um lobby, que arma uma operação, com aprovação da Câmara Municipal. E aí falam que vai fazer uma arrecadação e ela vai se pagar e sempre acontece que ela leva um naco que não é pouco importante – orientei teses de mestrado e doutorado sobre isso – e todas acabam concentrando renda e recursos nas mesmas áreas. Se o Arco do Futuro se fizer com capital privado, eu serei a primeira a apoiar, mas eu duvido, duvido, olhando as práticas das parcerias público-privadas no Brasil.

E as smartcities, o que a senhora pensa disso?

É mais uma moda, mais um fetiche, como era a cidade global, o desenvolvimento estratégico, tudo para confundir as mentes sobre o que nós precisamos fazer. Mas isso o Brasil já fez, na verdade. É claro que tem novidades na tecnologia de informação e comunicação, mas se nós olharmos um certo ciclo virtuoso que nós tivemos no poder local, em 1985, em 1990, quando a gente tinha poucos recursos, que na verdade estavam passando por um ajuste, mas elegemos prefeituras democráticas e populares, e criamos muita novidade que ficou conhecida no mundo inteiro. Acredito que precisamos recuperar a importância da descentralização das decisões do poder local, a democracia direta, especialmente o orçamento participativo, especialmente o Favela Bairro, quer dizer, transformar as favelas e bairros periféricos em áreas saneadas, em bairros dignos, com todos os equipamentos de infraestrutura.

É preciso resolver também o triste problema de mobilidade da metrópole. Saiu do Brasil o BRT, o corredor de ônibus, que pode sim resolver nossos problemas de mobilidade e não vamos eliminar o trilho, que é fundamental. Mas, acima de tudo eu acho que precisa olhar para a questão do saneamento, da moradia, da mobilidade, do uso e da ocupação do solo, evidentemente, uma preocupação que integra o meio ambiente.

Nós temos no Brasil conhecimento técnico muito bom, uma legislação avançadíssima, inclusive, a lei federal de assistência técnica permite levar o serviço do arquiteto para a população pobre. E ela está ali, aguardando ser aplicada, assim como a lei de mobilidade urbana, o Estatuto da Cidade. O problema é muito mais de correlação de forças, e de luta contra a desigualdade no país do que qualquer proposta mirabolante que possa vir aí com um desses títulos-fetiche, como estamos acostumados a ver.