Democracia e resistência

‘No que meu pai, Rubens Paiva, estaria pensando hoje?’

Filha de deputado morto pela ditadura recorda discurso de 1964. Para Comparato, impeachment não tem participação popular. E a professora Maria Victoria Benevides vê 'perversidade' no golpe

Roberto Parizotti / CUT

Grito pela Democracia, evento realizado em São Paulo, uniu representantes de movimentos sociais, partidos políticos,intelectuais, e ativistas contra o governo interino

São Paulo – Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Vera Paiva conta que a situação política brasileira tem provocado reflexões na família, com a inevitável lembrança do ex-deputado Rubens Paiva, morto em 1971 pela ditadura e cujo corpo não foi descoberto até hoje. “No que meu pai estaria pensando hoje?”, disse a psicóloga, durante o Grito pela Democracia, evento realizado ontem (21) em São Paulo, com representantes de intelectuais, movimentos sociais, partidos políticos e ativistas, contra o governo interino.

Ela citou discurso na Rádio Nacional do então deputado pelo PTB em 1º de abril de 1964, com o golpe em andamento, em que ele defende o governo João Goulart e faz um apelo à resistência. O áudio foi recuperado dois anos atrás pela Empresa Brasil de Comunicação. “Ele não teve a sorte de contar com a resistência que estamos vendo nos dias de hoje”, afirmou Vera.

O poder mais profundo, o que vem dos bastidores, nunca esteve ao alcance do povo, que continua “massacrado e explorado”, diz o jurista Fábio Konder Comparato, para quem a denúncia do impeachment, que chamou de “farsa”, precisa ser permanente. “Não podemos ficar apenas em manifestações esporádicas”, afirmou.

“O processo de impeachment não tem em nenhum momento a participação do povo”, disse Comparato, falando em “abuso de poder da classe dominante”. “Democracia é  poder soberano. Poder soberano é o que aprovaram na Constituição, o poder de eleger e destituir aqueles que foram eleitos. A Constituição atual tem 90 emendas, e nenhuma delas foi submetida à consulta popular.”

Como exemplo, ele citou um projeto apresentado em 2004 pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para regulamentar a realização de plebiscitos e referendos, permitindo que a população possa ter o direito de convocá-los, o que hoje é uma atribuição exclusiva do Congresso. “Esse projeto (número 4.718) até hoje não foi votado”, disse o jurista.

Ao mesmo tempo, Comparato afirmou que as transformações no Brasil são lentas. “Não se destrói um poder de cinco séculos da noite para o dia. Mas é preciso começar”, afirmou, relacionando capitalismo com o “abuso total” do egoísmo. “É o altruísmo que dará felicidade ao povo, não é o egoísmo. Vamos pra frente.”

“É preciso gritar”

A professora Maria Victoria Benevides afirmou que em momentos como o atual “é preciso gritar” contra um “movimento golpista ilegítimo e governados por forças ligadas, por exemplo, aos interesses do capital, das classes dominantes, que chega a assumir um grau de perversidade”. Ela destacou “estudantes que ocuparam escolas por causa de roubo da merenda, de falta de merenda, grupos marginalizados e perseguidos na sociedade, grupos LGBT, jovens negros majoritariamente assassinados pela Polícia Militar, povos tradicionais indígenas, quilombolas, direitos de todos que estão assegurados na nossa Constituição”.

É preciso gritar, acrescentou a professora, em defesa da continuidade da Comissão da Verdade, para que as ações pelos mortos e desaparecidos políticos continuem. “Não é possível que a nossa geração, que passou por 64, pela transição, fique se sentindo derrotada, inerte, com medo”, afirmou, defendendo “um otimismo pela vontade” e pedindo unidade da esquerda.

“Será que o final da ditadura militar foi em 1985?”, questionou a economista e professora da USP Leda Paulani, para quem “politicamente” o regime autoritário só acabou com a primeira eleição presidencial direta, em 1989. A referência foi ao fato de o voto não estar sendo respeitado neste momento, com o afastamento de Dilma. Ela vê risco de destruição de iniciativas políticas globais,como o Brics e o Mercosul, pelo “entreguista” José Serra, agora ministro de Relações Internacionais.

Leda criticou “colegas ortodoxos” que afirmam que a Constituição brasileira “não cabe” no Produto Interno Bruto (PIB), em referência à universalização de direitos. “Esse é o objetivo do golpe: entregar as nossas riquezas maiores para os interesses internacionais”, afirmou.

O também professor Guilherme Mello, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), observou que a democracia não se restringe ao aspecto político, mas é também “econômica, social, racial, de oportunidades em um país profundamente desigual”. Ele defendeu a volta de Dilma à Presidência da República “com o projeto que nós elegemos em 2014”.