defesa da democracia

Ex-ministro diz que burocratização afastou governo de movimentos sociais

Durante debate em São Paulo, Gilberto Carvalho faz autocrítica e afirma que reconhecimento de falhas de governo é essencial para uma nova etapa no país, voltada ao que chamou de 'mercado do povo'

Renato Araújo / ABr

Carvalho: Fomos achando natural ocultar as nossas vidas, tomar vinhos caros, financiar e ficar amigos dos empresários

São Paulo – O ex-ministro da Secretaria-geral da Presidência da República Gilberto Carvalho fez ontem (11) uma autocrítica e uma crítica ao governo, ao participar de debate de um ciclo promovido pelo Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé sobre política, no auditório da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. O debate contou também com as participações dos juristas Fábio Konder Comparato e Magda Biavaschi, além da jornalista e blogueira Hildegard Angel.

Depois de falar das conquistas sociais dos governos do PT, Carvalho, que também foi chefe de gabinete da presidência na gestão Lula, admitiu as falhas de governo que contribuíram para a crise política que nesta semana culmina com a votação do processo de impeachment na Câmara. “Nós temos de reconhecer também que a ilusão da conquista do aparelho de Estado e a maneira como nós fomos nos tornando grandes fizeram com que, contraditoriamente, enquanto inovávamos a cultura política deste país, com a presença dos trabalhadores, dos camponeses, dos setores populares, é verdade também que nós fomos profundamente influenciados pela cultura velha e dominante, fomos reproduzindo entre nós, com susto, com surpresa e tristeza as práticas que nós condenávamos”, afirmou.

O ex-ministro também disse que o governo passou por um processo de burocratização que o distanciou dos movimentos sociais. “Uma certa arrogância foi tomando conta de nós, achando que o poder sobre o aparelho resolveria os problemas e todas as contradições. Fomos iludidos por um processo de burocratização que foi nos afastando e começando a olhar para muita gente dos movimentos sociais como aqueles que atrapalhavam o exercício sério, republicano do nosso governo. Vocês não sabem quantas vezes em Brasília foi difícil conseguir que ministros, não de outros partidos, mas do Partido dos Trabalhadores percebessem os movimentos sociais, dialogasse com eles, porque achavam que ‘essa gente vinha só atrapalhar o exercício correto que estamos fazendo na nossa política'”, disse.

“E junto com isso o processo inevitável da corrupção quando de alguma forma nós naturalizamos os procedimentos que a velha elite realizou no aparelho de Estado”, afirmou Carvalho para em seguida destacar a importância da reforma política: “Fomos achando natural ocultar as nossas vidas, tomar vinhos caros, financiar e ficar amigos dos grandes empresários deste país, e não tivemos a clareza, e eu me coloco em profunda autocrítica, sobretudo em 2007, por conta dos processos dos companheiros presos, por esse tipo de Justiça que nós sabemos qual é, nós tínhamos essa dor e víamos como esse contágio avançava e não tivemos a clareza de fazer a reforma política para romper de uma vez por todas com a questão da dependência financeira nas nossas campanhas eleitorais, para vencer esse processo individualista das campanhas. E não fizemos a reforma política em uma correlação de forças muito favorável naquele momento, e por isso eu me reporto a 2007, em que nós poderíamos ter trabalhado as questões da participação social formalmente dentro dos governos, fazendo o processo de lista partidária e assim por diante, mas sobretudo acabar com o financiamento empresarial de campanha”.

“Tudo isso nos levou a um processo de fragilização, e enquanto estávamos fortes na economia, é evidente que as elites, que também se beneficiavam do nosso governo, nos toleravam, mas bastou o primeiro problema na condução da crise econômica, aí foi um divisor de águas entre quem são os amigos, companheiros, aliados e quem são aqueles que oportunisticamente estavam conosco e muitas vezes nós nos deixamos iludir por esse tipo de aliança”, afirmou.

Comunicação e apoio das ruas

Gilberto Carvalho também fez críticas à mídia, que vem articulando o golpe ao governo Dilma por meio do apoio ao impeachment. “A imprensa é expressão determinante para que não só houvesse a nossa condenação por parte das elites, mas sobretudo por beneficiários das nossas políticas, que são os setores populares. Desde o xingamento de Dilma na Copa de 2014, eu disse, não se iluda o ódio se cristaliza como a água que penetra na caverna, com as estalactites e estalagmites. Faltou comunicação com o povo, mas nós preferimos influenciar aqueles que nos apunhalavam. Lula também foi o governo que mais fechou rádios comunitárias. E agora o ódio se volta contra nós. No Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, que no segmento básico de três salários, a unidade custa R$ 55 mil e o governo entra com R$ 45 mil, se você não conseguir comunicar que ele recebe a casa porque é beneficiário, cidadão, e o dinheiro que era para o grande capital teve outro destino, se você não fala isso, esse companheiro coloca a bandeira do Aécio Neves, ouve as notícias da grande mídia e vai em um isolamento progressivo”, afirmou.

“Mas a questão mais extraordinária é que os mesmos setores maltratados pelo governo vão para as ruas e defendem o nosso projeto, é uma incrível maturidade de quem soube separar o que é a decepção da necessidade de defender a democracia. Considero este momento desnecessário, não precisávamos correr este risco”, disse ainda.

Sobre o debate provocado pelo processo de impeachment, o ex-ministro disse que se trata de “um momento extremamente propício (ao debate) e eu olho para esta semana com muito otimismo, porque eu sei que a nossa sociedade vai de novo se mobilizar para fazer a defesa desses valores essenciais”.

Carvalho elogiou a mobilização que ocorre em todo o país em defesa da democracia. “Vamos galvanizar essa energia para um novo padrão de governo e de projeto, e lembrando que as bandeiras que surgem não são as bandeiras antigas, há que se ter abertura para novas formas de luta, novas formas de organização que possam encontrar um grande caudal de energia de água para alimentar a turbina nova de um novo padrão de governo, que saiba que o mercado que nós temos de agradar não é o mercado internacional, ou o mercado financeiro, mas o mercado do nosso povo, daqueles que nos dão sustentação”, afirmou.

País doente

Divulgação Fespsp
Aldo Fornazieri, professor da Fespsp (à esp.), abre o debate realizado pelo Centro Barão de Itararé

O jurista Fábio Konder Comparato comparou a crise política a uma doença grave e que não será resolvida em poucos anos. “Se ficarmos nos sintomas aparentes, vamos discutir as relações entre PT e PSDB e Dilma e o Congresso, mas quais são as causas profundas”, indagou.

Segundo ele, a causa econômica da crise, que “custamos a enxergar”, é a passagem do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro. “O capitalismo tem uma relação própria de poder. Seu último inimigo foi a queda do muro de Berlim. O capitalismo é a primeira civilização universal da história. É uma mudança substancial no que se refere à produção de riqueza. A Revolução Industrial deu início a um processo de aceleração da produção de riqueza, com seus aspectos negativos, que reconhecemos, como o lucro antes de tudo, mesmo antes da dignidade”, disse.

Comparato também afirmou que os bancos não produzem riqueza, mas exploram e auxiliam a produção de riqueza por meio do crédito. “E há uma queda vertiginosa da produção industrial. Os bancos, que procuram o lucro, perceberam que a indústria já não dá o mesmo retorno e o crédito passou para os Estados. Isso não representa a redução do crédito, que no mundo representa o dobro da produção industrial. E esse crédito é fundado na confiança e tudo cai por terra quando não existe mais produção”, afirmou.

Comparato criticou o excesso de especulação e de ações no mercado financeiro. “Hoje esses papéis se acumulam. O lastro dos ativos da empresa é formado por outros papéis, como em um castelo de cartas. Em 2007, com a queda do Lehman Brothers, houve a partir daí um efeito universal. No campo mundial, o que se nota hoje é a substituição do setor industrial pelo financeiro. O país que teve mais aceleração da produção industrial foi a China e em 2015 sua produção foi a mais baixa em 25 anos”, afirmou, destacando também que a desindustrialização no Brasil é acelerada, com a produção em queda de 21% desde 2013. O jurista também lembrou dos efeitos da crise sobre a renda do trabalhador e os aumentos das desigualdades.

Pela legalidade e informação

A desembargadora aposentada e doutora pela Unicamp Magda Biavaschi sustentou que o processo de impeachment em curso na Câmara “rasga a legalidade democrática no país”.

Ela criticou o documento Ponte para o Futuro, que estabelece o compromisso do PMDB com a economia em um eventual governo de Michel Temer, adotando preceitos neoliberais, que atingem direitos das classes trabalhadoras. “Se o Ponte para o Futuro for aprovado, ele representará a flexibilização de todas as normas que criam obstáculos (para a acumulação de riqueza). O projeto diz claramente que o país tem de eliminar a fonte do direito, e substituir pela negociação”, afirmou, referindo-se ao princípio da prevalência do negociado sobre o legislado, que o lobby de empresas quer ver aprovado para tirar a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) de suas obrigações. “É isso o que está colocado no programa do PMDB e também esteve no projeto de Marina Silva para a presidência”, disse a desembargadora.

A jornalista Hildegard Angel, ao fim do debate, fez uma crítica aos profissionais de imprensa, que têm servido aos interesses das empresas em derrubar o governo. “Meus colegas mostram a importância de um bom salário, pois o conforto compra consciências e almas. No Rio de Janeiro, temos o Grupo Globo que domina todos os setores, a cultura, os quiosques da praia, a museologia, o patrimônio, você não pode exercer uma função de visibilidade se não tiver parceria ou conivência. Não estar simpático com eles é estar morto. É muito triste constatar isso. Em São Paulo, você tem um Gregório Duvivier, Mônica Bergamo, Janio de Freitas. Mas no Rio não tem. Luis Fernando Verissimo eventualmente toma posição. Eu me envergonho até de ser chamada de jornalista, eu prefiro ser chamada de blogueira – esses é que são combativos, fazem da notícia seu ato de coragem, de se posicionar”, afirmou.

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