Censura

PLs em tramitação no Congresso ameaçam conteúdo do Marco Civil da Internet

Parlamentares e entidades questionam propostas que estabelecem o ‘direito ao esquecimento’, permitindo retirada de políticos envolvidos em denúncias dos sites de busca, e o chamado ‘grampo virtual’

Hildo Rocha / Youtube

PL de autoria de Hildo Rocha tem uma regra proibindo citação de nomes de políticos envolvidos em escândalos

Brasília – Considerado um dos projetos que resultou em maior número de discussões entre parlamentares, empresários e representantes do setor nos últimos anos, o Marco Civil da Internet, tido por muitos como a “Constituição brasileira da Internet” e sancionado em junho do ano passado por meio da Lei 12.965/14, voltou ao centro de debates do Congresso Nacional. O motivo disso são projetos de lei que preveem a inclusão, no texto, de trechos que ou acrescentam itens dissonantes do que foi aprovado em 2014 ou que representam um retrocesso para a área no país – atendendo, segundo especialistas, muito mais a interesses de políticos que à internet e ao livre conteúdo na rede. Os temas mais polêmicos dizem respeito à inclusão, nas regras brasileiras, ao “direito ao esquecimento” e à legalização do chamado “grampo virtual”.

Existem cerca de dez propostas na Câmara e no Senado que tratam de acréscimos e mudanças ao texto do Marco Civil durante sua regulamentação – regulamentação, esta, em discussão e ainda não encaminhada pelo Ministério da Justiça, na forma de um projeto de lei, para o Congresso. Dessas propostas, duas foram apensadas ao Projeto de Lei 215/2015, de autoria do deputado Hildo Rocha (PMDB-MA), prestes a ser votado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ).

O texto, com o argumento de que “objetiva punir com maior rigor os crimes contra a honra praticados nas redes sociais”, tem como um dos pontos fundamentais a utilização, no país, de uma regra proibindo que nomes e referências de políticos envolvidos em escândalos, mas que não foram julgados pela Justiça, não sejam mais citados em sites de busca nem em redes sociais.

Dessa forma, por exemplo, o ex-presidente Fernando Collor, absolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), embora tenha renunciado após a aprovação de pedido de impeachment contra ele e seja o principal protagonista de um período crítico para o Brasil, terá de ter – caso o PL seja aprovado – seu nome retirado de qualquer referência sobre casos relacionados a escândalos de corrupção. O mesmo ocorre com o atual presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que embora seja réu em vários processos, ainda não foi condenado em nenhuma ação transitada em julgado.

O outro item, que está sendo chamado de “grampo virtual”, é a autorização para que a autoridade policial e o Ministério Público possam ter acesso ao conteúdo das pessoas em sites e redes sociais, em casos de apuração ou denúncia de crimes contra a honra. “A proposta pretende resguardar as pessoas contra estes crimes, que estão se tornando mais comuns a cada dia, sobretudo com recursos como o Facebook, portais e o Whatsapp, instrumentos que permitem que notícias e opiniões se espalhem com velocidade fenomenal, potencializando os efeitos das informações veiculadas”, afirmou o autor do PL, em sua justificativa.

Para o diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), Carlos Affonso de Souza, especialista na área, tanto o PL 215 como outros com caráter semelhante procuram trazer para o Brasil uma noção de “direito ao esquecimento” que é bem diferente da teoria na qual se baseiam e que surgiu na Espanha, alguns anos atrás. No caso daquele país, a tese surgiu a partir de decisão judicial que deu ganho de causa a um cidadão que teve um imóvel à venda anunciado na internet. E, todas as vezes em que o nome dele era procurado nos sites de busca, só aparecia a referência a esse imóvel – o que o fez considerar-se prejudicado em seus negócios.

‘Uso político’

“Aqui não acontece isso. Em nome desse ‘direito ao esquecimento’ estão sendo propostas providências que nada têm a ver com esse exemplo observado na Europa. O que se quer fazer no Brasil é uso político disso, para que parlamentares e pessoas envolvidas em escândalos e questões com a Justiça tenham desindexados seus nomes nessas chaves de busca”, disse Souza.

Segundo o diretor do ITS, quando na Europa se discute esse tipo de questão, discute-se também que sejam excluídos políticos dessas regras, enquanto aqui, está sendo proposto o contrário. “É preciso chamar a atenção para o fato de que o Brasil quer lembrar o seu passado recente, não quer esquecer. Quer ter ferramentas para que possa olhar esse passado e desenvolver um olhar crítico que ajude os brasileiros a terem sua própria identidade nacional. E o PL 215 está na contramão disso. Os trabalhos da própria Comissão da Verdade são prova disso”, enfatizou Affonso de Souza.

O representante do ISB acrescentou, ainda, que o mais perigoso do projeto é sua capacidade de fazer as pessoas controlarem sua versão da história e imporem essa versão, mesmo que não seja a verdadeira, para toda a coletividade. “O Congresso não pode dar às pessoas públicas o direito de impor à sociedade a trajetória de suas próprias histórias.”

Já a advogada Samantha Moura, da Pontifícia Universidade Católica (PUC), do Rio de Janeiro, avaliou que para alcançar o objetivo ao qual se propõe o PL pretende concretizar uma ampla reforma legislativa, modificando o Código Penal, o Código de Processo Penal e a lei do Marco Civil da Internet. “Abundam razões para criticar severamente esse projeto, a começar pelo fato de representar um retrocesso em relação a todas as conquistas alcançadas no que se refere à regulação da internet”, afirmou.

A advogada acredita que o desdobramento de tais projetos que criminalizam e apenam de forma desproporcional a expressão difundida pela internet, além de contrária a garantias individuais, é “profundamente antidemocrático”.

Poder econômico

“As grandes mídias corporativas, não obstante o seu poder econômico e a sua influência, estariam protegidas pelas garantias da liberdade de imprensa. Em contrapartida, as mídias alternativas e o cidadão comum, empoderados justamente a partir das possibilidades de interação trazidas pela internet, estariam constantemente ameaçados e criminalizados, sujeitos, inclusive à pena de reclusão, nos casos de injúria”, acentuou Samantha.

A advogada destacou, também, que na apreciação da matéria “toda cautela é necessária”. “Ao direito ao esquecimento, sempre se contrapõem o direito de acesso à informação e a liberdade de expressão, além do direito à memória. Ainda que se discutam os limites de cada um desses, é certo que deve haver uma ponderação que leve em conta de um lado, o interesse público no acesso à informação, e de outro, o interesse individual da pessoa envolvida”, ressaltou.

Para o deputado Ricardo Izar (PSD-SP), um dos parlamentares que defende a aprovação dos textos em tramitação no Legislativo com o intuito de modificar o Marco Civil, a discussão é necessária porque, na opinião dele, “a Lei 12.965/14 foi aprovada de forma açodada, na correria”. “Ficaram muitas lacunas, como as questões dos crimes na internet, do controle dos pais e tantas outras coisas que vão desfavorecer o consumidor final”, disse Izar.

A deputada Soraya Santos (PMDB-RJ), autora do PL sobre o item referente ao “direito ao esquecimento”, apensado à proposta, contou que o intuito da matéria é combater “publicações caluniosas ou mentirosas”. A deputada defende que a proposta pretende garantir a remoção de “conteúdos que firam a moral dos indivíduos retratados”.

Outro parlamentar que defende modificações é Sílvio Costa (PSC-CE). A proposta de Costa – embora não esteja apensada ao PL 215, também é criticada pelo setor porque sugere que passe a ser obrigatória a inclusão do CPF das pessoas que fizerem comentários em sites ou redes sociais. E, conforme o texto, a coleta desses dados deverá passar a ser de responsabilidade dos administradores de blogs, fóruns e serviços do tipo.

A justificativa para a proposta, contou o deputado, é “combater discursos de ódio, incitação criminosa e a prática de abusos”. Mas a matéria exige alterações em praticamente todos os sistemas de postagem existentes na internet e levanta a preocupação de empresas do setor com relação à segurança desses dados pessoais em casos de invasões ou vazamento.

Ampla discussão

O deputado Alessandro Molon (Rede-RJ), que relatou o projeto do Marco Civil da Internet, é totalmente contrário às matérias em tramitação e lembrou o período de ampla discussão do projeto, que ocorreu de forma democrática com todos os partidos e representantes do setor.

“Essa postura vai na contramão de toda a construção e mobilização para a aprovação do Marco Civil da Internet, que teve como fundamento básico o reconhecimento da rede como um espaço que potencializa o exercício de direitos e o usuário como o sujeito desses direitos. Ao contrário, o PL 215/2015 reforça a concepção do internauta como um criminoso em potencial e pune a prática de crimes na rede com mais severidade do que no contexto offline”, enfatiza carta aberta divulgada por mais de 50 entidades do setor. Elas pretendem protestar e realizar tuitaços pela rejeição do texto.

Dentre essas entidades destacam-se ASL Associação, Baixa Cultura, Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé, Cibercult UFRJ, Ciranda Internacional da Comunicação Compartilhada, Coletivo Digital,Coletivo Locomotiva Cultural, Coding Rights, Flisol Brasil – Festival Latino-americano de Instalação de Software Livre e
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC).

O assunto é objeto de audiências públicas no Congresso: uma hoje (29), na CCJ, e outra amanhã (30), na Comissão de Defesa do Consumidor. Os parlamentares que atuam junto às entidades contrárias ao teor do texto trabalham pelo adiamento da votação da matéria – prevista para os próximos dias.