Contraponto

Dallari vê ausência de base política, jurídica e social para golpe

Jurista diz que parecer “aparentemente jurídico” de Bicudo é insustentável. Acredita que maioria do STF zela pela Constituição. E condena “libertinagem” da imprensa

Jailton Garcia/RBA

São Paulo – O golpe civil-militar de 1964 reuniu, em seus alicerces, a coesão de uma parte poderosa do grande empresariado interessada em impedir os avanços sociais que se desenhavam, das elites oligarcas e das igrejas reacionárias; o apoio sistemático dos meios de comunicação; e os militares como força para assumir o comando político dessa “coesão” que inventou a “ameaça comunista” a servir de pretexto.

Toda essa convergência de forças conservadoras hoje não existe: “Em 1964 havia uma situação nova, de afirmação dos direitos humanos, inclusive dos direitos. E entre nós houve uma associação empresários-militares. Já se comprovou inclusive que empresários deram dinheiro para contratar professores e máquinas de tortura”, lembra o jurista Dalmo de Abreu Dallari, que anos 83 anos defende com vigor a Constituição de 1988 com uma das maiores conquista da República.

Meu primeiro embate com Gilmar Mendes foi na questão indígena. Ele defendia os invasores de terras indígenas. E lá já ficou evidente que a posição dele não era determinada pela Constituição, mas por interesses

Para Dallari, hoje as condições são muito distintas daquele cenário de seis décadas atrás. “Não há um grande líder, não há um grande partido, não há uma grande força política. Há uma multiplicidade de pequenos grupos, cada um com o seu interesse”, avalia o jurista, durante entrevista concedida ontem (21) ao programa de TV Contraponto, produzido em parceria entre o Centro de Estudos de Mídia Barão de Itararé e o Sindicato dos Bancários de São Paulo.

Dalmo Dallari carregava um exemplar da Constituição e exibia à câmera ao sustentar que, se ainda assim houver uma tentativa de impeachment, não importa se partindo da Câmara dos Deputados ou do Senado, a Constituição determina: “A última palavra quem dá é o STF”.

Com uma história de vida dedicada ao Direito, o professor da Faculdade do Largo São Francisco da USP ensina que um pedido de impeachment só pode ter como base atos de responsabilidade de um chefe de Executivo no exercício de seu mandato. Em alusão a um pedido de impedimento que teve como principal chamariz a assinatura do ex-jurista Hélio Bicudo, entregue na semana passada com ares de solenidade ao presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ), Dallari o desqualifica com discrição: “O parecer aparentemente jurídico não se sustenta. Ainda que alegue uma suposta omissão em exercício passado, não serve. Tem de ser ato de responsabilidade, e tem de ser no atual mandato”, enfatiza.

A conduta do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes não escapou do olhar atento do catedrático: “Existem ministros do STF que desprezam a Constituição, que não a levam a sério, mas a maioria não. A maioria se orienta pela Constituição e atua com responsabilidade e zelo”.

Dallari lembra de Mendes de outros embates no mundo do direito. “Ele é de família de grandes proprietários de terra do Mato Grosso. E eu por muitos anos defendi famílias de índios. Ele defendia os grandes proprietários, E eu ‘sou índio’ de quatro tribos, porque os defendi no Judiciário e ganhei deles o título. Meu primeiro enfrentamento com Gilmar Mendes foi justamente na questão indígena, em que ele defendia os invasores de terras indígenas. E lá já ficou muito evidente que a posição dele não era determinada pela Constituição, mas por interesses”, relatou o jurista.

Para o professor, o recente episódio do julgamento da inconstitucionalidade das doações empresariais em campanhas foi outro exemplo de conduta política de Mendes. Ele observa que a maioria do STF defendeu a Constituição e que o ministro, que travou o processo por mais de um ano mesmo sabendo que já era voto vencido, atuou politicamente na questão.

Libertinagem

O principal componente do cenário de crise política e econômica, na visão de Dallari, está na conduta dos meios de comunicação. “A imprensa atua como se ainda estivesse em campanha, como se a eleição não tivesse acabado.” Ele considera que as investigações da Operação Lava Jato, por exemplo, poderiam dar uma grande contribuição ao combate à corrupção. No entanto, os jornais dirigem a divulgação das investigações com uma paixão “anti-PT e anti-Lula” que a desqualificam. “Tentam convencer a opinião pública que a corrupção só tivesse sido inventada agora. As grandes empresas sempre usaram ilegalidades para tirar proveito, e está se tratando esse caso como se fizesse isso só agora. O antipetismo e ao antilulismo exacerbados distorcem as notícias.”

Dallari critica com acidez a prática recorrente dos veículos de comunicação, por abusar da retórica para noticiar versões e dando-lhes aparência de fatos. “Há uma excesso de ‘teria ocorrido’, ‘supostamente feito’, que revela um distanciamento entre a cobertura e os fatos”, constata, observando que quando se comprova mais adiante o “teria ocorrido” não ocorreu, e o ‘supostamente feito’ não se fez, a reputação das pessoas já está destruída. “Há injustiças e leviandades em divulgações que depois não se comprovam.”

O professor relativiza até mesmo a crítica ao juiz que conduz o processo em torno da Lava Jato. “Ele é um juiz que está sendo visto por milhões, pesou-lhe o deslumbramento impulsionado pela conduta da imprensa”, para quem Moro acaba atuando como promotor, investigador e julgador ao mesmo tempo.

“Aprendi através da história que a liberdade de imprensa é fundamental. Mas que isso não se confunda com libertinagem. Os dirigentes da imprensa devem saber que ajudam a criar um ambiente de escândalo estimulando o exibicionismo. Deveriam ter atitude mais responsável com o fato jurídico.”

A íntegra do programa Contraponto – com participação dos jornalistas Luiz Carlos Azenha, Kiko Nogueira, o blogueiro Eduardo Guimarães e mediação do diretor da RBA Paulo Salvador – pode ser vista aqui. A edição de outubro da Revista do Brasil trará uma edição ampliada da entrevista.

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