reforma ou contrarreforma?

Proposta de fim da reeleição na reforma política é vista como casuísmo

Professor de ciência política, que finaliza livro com propostas democráticas da sociedade civil para a reforma, avalia que deputados discutem mudanças em função de conveniências do momento

arquivo pessoal

Ianoni critica doações de empresas e defende reforma acompanhada de paridade de gênero e de sistema em lista pré-ordenada

São Paulo – O casuísmo sempre foi marca da política no Brasil e pelo visto isso ainda não mudou. Para o professor de Ciência Política Marcus Ianoni, da Universidade Federal Fluminense (UFF), esse comportamento, capaz de revolver a história e mostrar a face cínica e oportunista dos políticos, veio mais uma vez à tona nos últimos dias, com a apresentação do relatório substitutivo das propostas de emenda à Constituição (PECs) sobre reforma política, do deputado Marcelo Castro (PMDB-PI).

Além de constitucionalizar o financiamento empresarial de campanha, o texto, que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), pretende ver votado em plenário até o fim de maio, prevê entre outras coisas acabar com a reeleição para cargos executivos, bem como estabelecer mandatos de cinco anos e disputas eleitorais baseadas no voto distrital, o chamado ‘distritão’, um sistema em que os estados são divididos em distritos, com eleição majoritária.

Crítico das propostas do relatório, Ianoni afirma que o fim da reeleição é um casuísmo: Por que está sendo proposto isso neste momento? Diante de duas vitórias do Lula e duas vitórias da Dilma, e quem sabe de uma próxima vitória do Lula, então, surge esse casuísmo”. Não é preciso retroceder muito para verificar que a oposição que hoje quer o fim da reeleição, no governo Fernando Henrique Cardoso votou pela emenda que permitiu sua reeleição em 1998, inclusive, postergando o desgaste político de uma desvalorização do real, que veio em seguida à reeleição.

Ianoni também critica a manutenção das doações de empresas para campanhas, mas entende que uma reforma política de espírito democrático viria também acompanhada de paridade de gênero entre homens e mulheres nos cargos e de um sistema eleitoral baseado em lista pré-ordenada, em que o eleitor por meio de dois turnos vota não apenas em candidatos, mas preferencialmente em projetos.

“É melhorar a relação de representação política de três maneiras: tirando a influência do poder econômico no financiamento eleitoral e, portanto, no próprio resultado das eleições; segundo, melhorar essa relação de representação, fazendo com que o eleitor possa votar em listas pré-ordenadas para fortalecer o vínculo com os partidos e não manter esse vínculo atual, que é no personalismo dos candidatos. E o terceiro modo de melhorar essa relação de representação política é aumentando a participação das mulheres, nas campanhas eleitorais e nos cargos eletivos, porque o Brasil é um dos países com menor participação das mulheres nesses cargos eleitorais que resultam no parlamento e no Executivo”, afirma.

Estudioso do assunto, Ianoni está perto de concluir um livro sobre o tema, que será lançado no 5º Congresso Nacional do PT, entre 11 e 14 de junho, em Salvador, reunindo reflexões e propostas das correntes progressistas do pensamento político. O livro editado pela Fundação Perseu Abramo, com o título Reforma Política Democrática – Temas, Atores e Desafios, traz artigos de 23 autores, dos quais Ianoni é o organizador.

O trabalho é dividido em três partes, partindo das propostas que são apoiadas pela Coalizão da Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, que representa 112 entidades dos movimentos sociais, sindicatos, centrais sindicais e organismos da sociedade civil. O livro continua com a análise das implicações da reforma, e conclui com uma terceira parte que trata da estratégia de mobilização. Entre os autores estão o ex-governador Tarso Genro, um dos autores, faz uma análise política e histórica introdutória ao tema, o deputado Henrique Fontana, que foi relator da reforma na legislatura anterior, e o atual presidente de CUT, Vagner Freitas, que analisa a reforma como possibilidade de um instrumento efetivo para combater a corrupção.

Nesta entrevista, Ianoni fala das motivações desse novo trabalho e faz também uma análise do andamento da reforma neste momento, em que as forças conservadoras da Câmara mostram-se empenhadas em promover na verdade uma contrarreforma, que reforçaria o poder do capital e do personalismo nas campanhas.

Você convidou 23 autores para o livro. Qual é o perfil dos autores?

A maioria é de acadêmicos e, entre eles, predominam os de Ciência Política, um ou outro de Sociologia e Direito. Outro grupo é formado por autores que são lideranças de movimentos e organizações sociais, como o Vagner Freitas, presidente da CUT, e o Marcello Lavenère Machado, da campanha da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas. E também há os autores que são políticos, como Bruno Elias e Henrique Fontana.

Podemos dizer que o livro traz uma síntese do pensamento progressista hoje?

Eu gosto de chamar esse pensamento de campo democrático popular, reunindo intelectuais, políticos e lideranças das organizações da sociedade civil.

A ideia de que a reforma política, com o fim do financiamento empresarial de campanha, pode ser um instrumento importante para combater a corrupção é a mensagem principal do livro?

Essa é uma das mensagens primordiais, mas trata-se de melhorar a relação de representação política de três maneiras: tirando a influência do poder econômico no financiamento eleitoral e, portanto, do próprio resultado das eleições; segundo, melhorar essa relação de representação, fazendo com que o eleitor possa votar em listas pré-ordenadas para fortalecer o vínculo com os partidos e não manter esse vínculo atual, que é no personalismo dos candidatos. E o terceiro modo de melhorar essa relação de representação política é aumentando a participação das mulheres, tanto nas campanhas eleitorais, como nos cargos eletivos, porque o Brasil é um dos países com menor participação das mulheres nesses cargos.

Então, o centro do livro, digamos, é um tripé: fim do financiamento empresarial de campanha…

É o fim do financiamento empresarial de campanha, ou através do financiamento público exclusivo, ou pelo menos acabando com a permissão de que pessoa jurídica financie eleições. Depois, a ideia é acabar com a lista aberta (que vigora atualmentee introduzir a lista pré-ordenada, que pode ser fechada ou flexível, e as cotas paritárias. Tem uma outra proposta estruturante, que é de encaminhamento da reforma por meio da constituinte exclusiva, porque para acabar com o financiamento empresarial, para fazer lista pré-ordenada e para implementar cotas paritárias é preciso ter uma arena decisória que encaminhe isso. Embora a conjuntura tenha mudado e esteja havendo uma reação conservadora, a arena poderia ser convocada por iniciativa popular de lei, dirigida ao Congresso. Ou o Congresso poderia convocar um plebiscito para ver se o povo quer essa constituinte. E aí nós iríamos lutar para que esse plebiscito fosse favorável à realização da constituinte exclusiva da reforma política.

Nos próximos dias vai haver votação do relatório do deputado Marcelo Castro… Essa proposta não corre risco de ser atropelada?

Eu acho que corre. O risco de uma reforma política conservadora ser aprovada aumentou significativamente. Mas existe uma certa dúvida no ar, porque uma vez que essas regras de sistema eleitoral, de financiamento privado existem há muitos anos, e o número de reeleição de candidatos, na média das últimas 14 eleições, é muito grande, cerca de 70% dos candidatos se candidatam novamente e boa parte se reelege, há uma resistência à mudança. Mas fica uma incógnita no ar, sobre qual vai ser efetivamente o comportamento dos parlamentares, mesmo com a investida conservadora. Quais vão ser as alianças, como eles vão se comportar em cada proposta, no distritão, no financiamento misto, na questão da reeleição, coincidência do calendário eleitoral, coligações etc. Existe uma certa incógnita, não é tão simples prever o resultado, embora como o relatório foi apresentado, acompanhando o dia a dia, a gente possa ver como vão se desenhando as composições. Segundo tenho acompanhado, o relatório do deputado Marcelo Castro, segundo ele próprio, expressa a média dentro da própria comissão (Comissão Especial da Reforma Política), e ele vai submeter esse relatório à votação primeiro dentro da comissão, depois no plenário. O Marcelo Castro diz que ele, enquanto relator, não é a favor do distritão, mas a maioria dentro da comissão é a favor.

Qual é a inspiração política ou filosófica da lista pré-ordenada, de onde ela surge?

Primeiro, a lista está inserida em um sistema eleitoral chamado sistema proporcional, que surgiu em alguns países da Europa, a princípio na Bélgica e depois em outros, de uma demanda para democratizar a representação política. O modelo mais forte até então existente era o anglo-saxão, que é o sistema majoritário, que não levava em conta a proporcionalidade dos votos. Vamos supor que um partido que tivesse 40% dos votos levasse todas as vagas em disputa, sendo que os 60% restantes ficassem de fora. Então, para mudar isso, as maiorias até então sub-representadas ou as minorias, também sub-representadas, passaram a reivindicar que as cadeiras no parlamento fossem ocupadas de modo proporcional e esse é o primeiro ponto. Então, a lista está inserida em uma modalidade de sistema eleitoral para democratizar o sistema representativo e essa modalidade chama-se sistema proporcional.

Segundo ponto: uma vez introduzido no mundo o sistema proporcional, na maior parte dos países, ele era de lista pré-ordenada, sendo fechada ou flexível. Em função de que o protagonismo, nos países em que esse sistema proporcional foi implementado, é dos partidos, o Brasil foi o primeiro país a implementar dentro do sistema proporcional uma modalidade específica, que a gente costuma brincar que é uma jabuticaba, porque é um produto tipicamente brasileiro. Ou seja, nós introduzimos o sistema proporcional, mas inventamos a lista aberta, que depois foi implementada e copiada em outros países, como por exemplo, na Finlândia, na Polônia. São minoritários os países nos quais o sistema proporcional é de lista aberta, como no Brasil hoje.

A lista pré-ordenada é o sistema mais adotado no mundo hoje, chegando a 58% dos países democráticos, segundo o deputado Marcelo Castro.

Pelos dados de uma pesquisa que fiz, a representação proporcional de lista é adotada em 70 países, dos quais 57 usam listas pré-ordenadas. Na maioria dos países em que há representação proporcional, a lista é ou fechada ou flexível. Temos lista fechada, por exemplo, em Israel, na Argentina. Pesquisei mais de 100 países no mundo. Existem dois tipos de pré-ordenamento: o fechado e o flexível. A diferença entre eles é que no fechado, quando você vai votar, vota na lista do partido que você escolher, agora, na flexível, vamos supor que o candidato João esteja na quinta posição, o partido pré-ordenou ele como quinto lugar, e se o partido tiver cinco vagas, o João vai ser o quinto eleito. Aí se você quiser dar um peso para que o nome do João suba na lista (vamos supor que você desconfia que o seu partido só vai eleger dois), então, o eleitor tem o direito de dar um ponto a mais, para reforçar que o nome que ele prefere suba na lista. Esse tipo de lista flexível tem na Dinamarca, Suécia, Holanda, Bélgica, vários países da Europa, e a maior parte dos países que tem lista pré-ordenada adota o modelo flexível, tanto que em função disso, um colega meu especialista em sistema eleitoral defende a lista fechada, mas devido à nossa tradição personalista, ele acha que a lista flexível pode ser um pouco mais simpática. Em função disso, essa modalidade está presente na proposta que o Henrique Fontana fez e de certa forma está presente na proposta da Coalizão Democrática.

E enquanto nós discutimos isso, a Câmara tende a, digamos assim, neste momento, na comissão especial, a aprovar o tal do distritão em vez de lista pré-ordenada. Como você vê isso?

O distritão acaba com a proporcionalidade, a eleição vai virar uma espécie de corrida de cavalos, e os eleitores vão votar em candidatos, vai aprofundar a tendência já existente no Brasil de voto focado nas pessoas e consequentemente enfraquecimento dos partidos.

E como um estudioso, um especialista, você diria seguramente que o fim do financiamento empresarial de campanha seria um instrumento efetivo para combater a corrupção?

Os escândalos de corrupção mostram uma relação muito clara entre financiamento privado e corrupção, mas não é a única frente de corrupção. Por exemplo, a Operação Zelotes não envolve as campanhas eleitorais, e é um grande escândalo de corrupção envolvendo a burocracia pública, intermediários e setor privado, sem que os partidos estejam inseridos. Então, o financiamento privado de campanha não é a única fonte de corrupção, mas é uma fonte importante dentro do sistema representativo. E dada a importância desse sistema, enquanto legitimador da democracia, se a instância que mais desempenha esse papel, por meio das eleições, é deteriorada por um mecanismo de financiamento eleitoral com recursos de empresas, então, precisa haver uma mudança para recuperar a legitimidade da política. Todas as pesquisas de opinião colocam os partidos e o parlamento como instituições malvistas. É preciso mudar essa situação, e o sistema privado (de financiamento por empresas) tem muita responsabilidade na corrupção associada ao processo eleitoral.

No relatório que está sendo discutido na Comissão Especial da Reforma Política é determinado o mandato de cinco anos e não mais de quatro, a reeleição fica proibida, e a próxima eleição em 2016 seria para um mandato tampão, unificando o calendário eleitoral a partir de 2018. Você tem uma posição sobre essas questões?

A princípio eu diria que o fim da reeleição é um casuísmo antipetista. Por que está sendo proposto isso neste momento? Diante de duas vitórias do Lula e duas vitórias da Dilma, e quem sabe uma próxima vitória do Lula, então, surge esse casuísmo antipetista. Quando a reeleição foi aprovada pelo PSDB, ela era uma boa ideia; agora, virou má ideia. Eu acho que a gente deve refletir e perceber que estão buscando não o melhor sistema político, mas estão buscando as melhores conveniências para o momento.

Se você recuperar a história recente tem a reeleição do Fernando Henrique em 1998, garantida por emenda na Câmara, inclusive com compra de votos, e que para acontecer foi preciso esconder a desvalorização do real.

Nesse caso, a emenda foi aprovada em 1997, e jogou muito peso para ter a reeleição, foi isso mesmo. No caso da Reforma Política de agora, também acho que a coincidência de todas as eleições na mesma data não é uma boa coisa, porque tem sido positiva a participação eleitoral dos brasileiros a cada dois anos. E com essa unificação do calendário eleitoral, as eleições vão ocorrer a cada quatro ou cinco anos, dependendo do que for aprovado, e se já é difícil atualmente você fazer uma boa discussão quando vota para presidente, governador, deputado federal, deputado estadual e senador, enfim, são cinco cargos e aí aumentando para sete cargos, porque inclui prefeitos e vereadores, vai ficar ainda mais confuso e a discussão poderá ficar muito precária. Eu acho que essa ideia não é positiva. Alguns alegam que vai economizar recursos públicos, porque vai se gastar de uma vez só a cada período, mas não tem de pensar só no custo, na questão econômica, mas é preciso pensar também no custo para a democracia e essa solução representa um custo alto sob esse ponto de vista.