crise de identidade

Cientista político diz que é preciso acabar com cinismo para combater a corrupção

Professor de sociologia afirma que problema está disseminado em todas as esferas de poder e instâncias da sociedade, e que as pessoas debatem o assunto como se o problema fosse apenas com o outro

Arquivo pessoal

Angelo: “O outro, em geral, é o PT, o que é um cinismo, porque é como se você não tivesse nenhuma acusação”

São Paulo – Na ressaca que se seguiu às manifestações do dia 15 de março contra o governo, o historiador e cientista político Vitor Amorim de Angelo, professor do mestrado em Sociologia Política da Universidade Vila Velha, na região metropolitana de Vitória, foi entrevistado ao vivo pelo telejornal regional pela Rede Globo do Espírito Santo para comentar as manifestações.

O que seria apenas mais uma entrevista de rotina destinada a hostilizar o governo de Dilma Rousseff e seu partido, o PT, acabou sendo uma abordagem crítica e inesperada, com o professor chamando a atenção para o fato de a corrupção ser disseminada em todas as esferas da sociedade. “A corrupção está entre nós há muito tempo, como não está só no Executivo”, disse, fazendo referência aos diversos partidos citados na Operação Lava Jato.

Para Angelo, trata-se de “um problema complexo” e sua discussão não pode ter ênfase só no Executivo, “senão terminamos mascarando a presença desse problema em outros espaços da sociedade”. Durante a entrevista à TV, o professor também discordou de uma tese da jornalista Miriam Leitão, segundo a qual parcela das pessoas que participaram das manifestações da direita é a mesma que votou em Dilma, o que punha em xeque o resultado das eleições. Ele citou pesquisa em São Paulo, que indicava que apenas 2% das pessoas que estavam naquele ato haviam votado em Dilma, e disse que “a democracia é um regime de confiança, não de adesão, portanto, não é uma opção aderir ou não a um resultado”.

Nesta entrevista à RBA, Angelo se aprofunda um pouco mais na questão da corrupção, para além do ódio, e desmascara um problema que se esconde em discursos pseudomoralistas: “A corrupção não está só na política, nem só nas empresas, mas no cotidiano de cada um, desde um aluno que faz um pequeno ato de corrupção ao colar ao sujeito que vai declarar o Imposto de Renda e toma atitudes convenientes para pagar menos. No fim, fico me perguntando se a gente rouba pouco apenas porque tem pouco dinheiro envolvido no nosso cotidiano, ou pouco poder no nosso entorno”.

Confira os principais trechos da entrevista:

O que explica o fato de a corrupção estar disseminada em todas as instâncias da sociedade? É cultural, é subjetivo, é histórico, é tudo isso e mais um pouco, afinal, por que temos esse traço tão marcante na sociedade?

Existe uma dimensão moral, propriamente dita, em relação ao sujeito que é desonesto. Essa dimensão parece que também está muito arraigada entre nós, a sua deturpação, na verdade. Nós facilmente racionalizamos alguns comportamentos que seriam negativos do ponto de vista da corrupção, e justificamos isso com algum cinismo. Por exemplo, eventualmente alguém sonega, alegando que a carga tributária no Brasil é muito alta. Ora, quando a gente usa esse argumento é porque perdeu completamente as referências. Se tem algo injusto, a pessoa busca atalhos e aí chegamos nessa questão da disseminação da corrupção.

A corrupção não está só na política, nem só nas empresas, mas no cotidiano de cada um. Desde um aluno que faz um pequeno ato de corrupção ao colar, ou o sujeito que vai declarar o Imposto de Renda e toma atitudes convenientes para pagar menos. No fim, eu fico me perguntando se a gente rouba pouco apenas porque tem pouco dinheiro envolvido no nosso cotidiano, ou porque tem pouco poder no nosso entorno. Eu acho que a dimensão moral e ética, ética especialmente, tem o seu peso. Mas a questão histórica também é muito relevante, porque existem algumas sociedades em que esse padrão ético é muito alto, e se a pessoa é pega em um ato de corrupção ela se suicida de tanta vergonha. Aqui no Brasil, historicamente, nós temos uma relação um pouco estranha com essas questões, com a questão pública, com o dinheiro público.

E o que seria necessário para atacar o problema da corrupção?

Se você considerar o que acontece hoje, fica tudo na dimensão ética e moral, e inclusive determinados setores da sociedade civil se colocam numa trincheira como se o problema ético e moral fosse do outro. Esse outro, em geral, é o PT, o que é um cinismo elevado ao absoluto, porque é como se você não tivesse nenhuma acusação a pairar sobre si, é como se políticos da oposição tivessem feito carreiras absolutamente ilibadas, e tudo de problemático que existe em relação à corrupção cai no colo do PT, mesmo quando a gente sabe que a corrupção na Petrobras começou em 97, ano do governo Fernando Henrique. Isso põe por terra toda essa justificativa.

A solução do problema passa pela educação?

A escola teria um papel fundamental, mas os professores, o diretor da escola, todos fazem parte de um sistema relativamente viciado na sua origem. Mas apesar da obviedade dessa resposta eu penso que para a educação – e não estou pensando em algo como educação moral e cívica – existe um papel muito grande no qual a escola pode se empenhar, ao menos na reflexão da importância do sujeito nas questões públicas e na reflexão sobre a cidadania. Eu acho muito difícil pensar qualquer saída para isso fora da instituição política, sem passar pela escola, pela universidade, por aqueles setores que, embora pertençam a esta sociedade, e sejam tão viciados quanto ela, eles tenham minimamente um senso crítico, um distanciamento, uma capacidade de fazer uma reflexão mais crítica a respeito de nós mesmos.

Sua entrevista na Rede Globo teve repercussão. Ficou evidente que você combate a visão seletiva da mídia na cobertura da Operação Lava Jato sempre em detrimento do PT…

Eu disse para o apresentador que a gente poderia discutir o papel do PT, mas era numa outra base e não naquela que ele estava propondo. O que estava sendo colocado ali era se o PT não teria a responsabilidade de acabar com tudo isso, já que está no governo. O que eu estava dizendo é que a gente precisa discutir qual é o significado do que está acontecendo justamente num governo de esquerda, que defende os trabalhadores, cujo partido que está no governo, tinha uma proposta ética bastante diferenciada. Isso, sim, parece ser o ponto central, porque a gente poderia chegar a alguns pontos importantes, como a desilusão com o projeto de esquerda, a ideia de que todo mundo é igual, a ideia de que não tem político ético, a ideia de que ninguém presta mais, um desencantamento absoluto com a política, porque não há mais alternativa, uma guinada ao conservadorismo, como se um golpe militar e uma ditadura pudessem resolver mais rápido do que na democracia que, a despeito de todas as suas vantagens, é muito lenta da tomada de decisão.

Se a gente quer discutir o PT em particular, tudo bem, mas se for olhar para o que realmente importa é diferente. Olhar para o partido apenas para dizer que tudo se reduz a ele é muito conveniente. Porque nós não sabemos, basta fazer um exame não muito longo na história do Brasil que você vai encontrar outros partidos, outros integrantes da nossa elite política – alguns até aqui hoje, sobreviventes da ditadura, envolvidos em passado não muito distante em outros casos –, misturados a denúncias de corrupção e eventualmente até condenados, só que protelando por questões judiciais todas essas condenações.

Você pode dar exemplos?

Nós tínhamos um deputado muito famoso, o Maluf (Paulo Maluf), é um sujeito que sabidamente está envolvido em corrupção…

A prefeitura de São Paulo e o Ministério Público estão repatriando o dinheiro que ele mandou para fora….

Sim, mas como pode ele ter sido um parlamentar? Isso é um escárnio que só é possível por meio dessas três dimensões que eu falei. Porque historicamente a gente racionaliza isso. Nossos eleitores às vezes dão importância menor a isso. O Paulo Maluf é um caso emblemático de evidências fortíssimas de órgãos públicos e instituições públicas, instituições privadas no exterior e órgãos públicos no Brasil fazendo acordo de devolução do dinheiro e nada acontece com ele, que tem mandato de prisão na Interpol e fica livre no Brasil. Tem alguma coisa que deveria nos levar à reflexão sobre isso, um caso como esse mostra que tem alguma coisa errada no nosso sistema político e na sociedade como um todo.

A reforma política pode ser um instrumento para começar a mudar essa realidade?

Uma reforma nunca é absoluta, porque não só ela não vai resolver o problema 100%, como ela não vai resolver o problema para além da instituição política, pois você não tem como reformar a sociedade. Às vezes, tenho a sensação de que estamos tratando a reforma política como uma panaceia, que pudesse resolver todos os nossos problemas, mas isso é uma bobagem.

Entre os países mais concentradores de renda do mundo o Brasil avançou com os programas sociais nos governos Lula e Dilma, mas agora os críticos dizem que esse modelo se esgotou e é preciso dar o próximo passo. Você concorda?

A concentração de renda é um problema histórico no Brasil, e não dá para você ter uma sociedade democrática sem ampliar os direitos civis, políticos, e quanto a isso estamos mais ou menos bem, mas sem ampliar os direitos sociais. Então, um dos grandes gargalos hoje do nosso país do ponto do regime político é que nós temos uma sociedade que vota, que tem direitos políticos, mas, no entanto, uma boa parcela desses eleitores não tem tido historicamente a chance de se apropriar das riquezas nacionais. E esse é um problema que influencia inclusive o primeiro direito político, porque não dá para acreditar que exista uma liberdade absoluta de tomar uma decisão política sendo que economicamente você está dependente.

Vou citar um exemplo: se o sujeito vende o seu voto por uma dentadura, e isso é uma imagem comum, isso significa que o problema econômico dele é tão grande que uma dentadura é capaz de valer mais do que um direito político. Então, do ponto de vista moral alguém que não tenha um problema assim pode pensar “que absurdo, o sujeito não tem cidadania, não tem consciência do que vale o voto”, mas, nesse caso, o voto não vale nada. Falta para nós uma sociedade que materialmente tenha um mínimo possível para então haver uma liberdade de escolha, de manifestação, de ação política. Sem isso, nós jamais teremos um regime político plenamente democrático.

E como você acha que continua a transformação social do país, ainda que não estejamos falando de mudanças estruturais? O foco na educação, como pretende o governo, é uma possibilidade de continuar essa transformação?

Eu acho que a educação é importante, mas se você não tem uma economia que absorva essas pessoas, você vai ter pessoas com curso superior em empregos mais simples, tendo que pagar o Fies ainda; então, isso pode ser uma armadilha. Mas é claro que é melhor ter a educação formal, porque isso leva a pessoa a viver pelo menos por algum tempo em espaço de reflexão, de crítica, leitura. Então, isso é muito melhor, só que colocar nisso o motor da transformação social eu acho bastante complicado, porque a economia precisa absorver essas pessoas. E ao menos neste momento nada nos indica isso.

Você acredita que o país está dividido, como vem sendo propalado? E de quem é a culpa? É do PT?

Não dá para jogar a culpa só no Lula porque se você olhar para a classe média, que nada tem a ver com ele, ela é historicamente conservadora, ela passou a se incomodar com esse governo que faz políticas sociais, mas o fato é que a classe média nunca foi um alvo do governo do PT. A classe média sempre era tomada como alguém para se bater nessa hora de crise política, porque ele atacava a elite, mas a elite não estava nem aí, porque afinal estava ganhando o seu capital. A classe média foi ficando órfã. Ora, em política não tem espaço vazio. Serra, Aécio, Alckmin, Marina tentaram pegar esse espaço, e o PT não tem condição políticas, ao me ver, de ocupar esse espaço. Você conhece a Marilena Chauí, basta lembrar do discurso dela, um discurso extremamente raivoso em relação à classe média, para a gente falar assim ‘ah, tudo bem, é isso, mas e aí?’. Você vai riscar a classe média? Ela existe. Uma reforma tributária, por exemplo, teria surtido um efeito enorme sobre a classe média, que é extremamente penalizada. Uma reforma política teria respondido muito aos anseios da classe média, é ela que estava em grande medida nas manifestações de 2013. O cenário que temos hoje lembra muito o cenário de 1930. A classe média que apoiou o tenentismo, era uma classe média também contra a corrupção, contra a política e alguém ocupou esse espaço.

Essa divisão que temos hoje coloca o Congresso de um lado e o governo de outro. Temos o perfil também conservador do Congresso, a terceirização sem limites, redução da maioridade penal, do poder sobre demarcação de terras indígenas, e até outro conceito de trabalho escravo… O parlamento hoje pauta um debate conservador no país?

O Congresso é em grande medida um reflexo da sociedade. Claro que é um espelho um tanto distorcido, mas tem ali posições bem representativas da sociedade. Este congresso, ele é, se a gente olhar o perfil socioeconômico dos eleitos, o mais conservador dos últimos 50 anos. Não há nenhuma contradição entre isso tudo que você citou e os parlamentares que ali estão; eles estão fazendo exatamente o que pensam. O assustador é a gente olhar o apoio a algumas dessas propostas, porque, pegando a maioridade penal, por exemplo, a última pesquisa que eu vi dizia que 85% da população brasileira apoiava a redução da maioridade. Quer dizer, a classe média é conservadora, mas falta gente aí para fechar esse grupo de 85%.

Nós sabemos que historicamente, as camadas mais pobres terminam assumindo, contraditoriamente, posições muito conservadoras – mas aí entra a educação, porque com a educação formal, haveria ao menos a oportunidade de refletir, de ler, de discutir e de saber que os mais pobres, os mais simples, os negros da periferia são eles que estão hoje majoritariamente na cadeia, e vão ser eles os atingidos especialmente pela redução da maioridade penal. Veja como as pessoas estão sem capacidade de reflexão crítica. As pessoas se aliam a posições conservadoras, que são prejudiciais à sua própria classe, ou fração de classe, ou segmento social.

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