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Como funcionava a empresa de fachada da Globo nas Ilhas Virgens

Na sexta reportagem da série sobre a compra dos direitos da Copa de 2002, o jornalista Joaquim de Carvalho, do Diário do Centro do Mundo, conta como funcionava empresa de fachada aberta pela Globo em paraíso fiscal

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O “endereço” da “Empire” nas Ilhas Virgens: empresa “era só no papel”, diz advogado

O dia amanhece com galos cantando em pleno centro de Road Town, capital das Ilhas Virgens Britânicas, no Caribe, onde, em 2001, a Rede Globo comprou uma empresa por cerca de US$ 220 milhões. O que poderia haver de tão valioso no Caribe para que a Rede Globo fizesse um investimento deste porte?

O esconderijo para um tesouro é a resposta mais apropriada. Exatamente como no tempo dos piratas, que por sinal fizeram história por aqui, como o lendário Barba Negra. E para piratas no passado, assim como para sonegadores de impostos, corruptos, traficantes de drogas e de armas no presente, o melhor lugar do mundo é onde se pode guardar a riqueza ilícita longe dos olhos das autoridades. Um paraíso. Isso é Ilhas Virgens.

Quem conhece bem os meandros deste paraíso fiscal é o advogado brasileiro Marcelo Ruiz, que desde 2011 trabalha para um escritório de recuperação de ativos instalado no centro financeiro de Road Town. Seu trabalho é descobrir quem está por trás das empresas abertas no país, que integra a Coroa Britânica, e repassar os dados para os escritórios das nações onde correm processos – Cayman, Suíça ou Brasil, por exemplo.

Ele, evidentemente, não trabalha sozinho. Além dos advogados de todos os continentes que dividem com ele um andar inteiro no edifício Fleming House, onde está uma das maiores empresas de telefonia móvel do país, a Lime, ele trabalha com a Kroll e outras empresas de investigação formada por ex-agentes da CIA, Scotland Yard e FBI.

“Essas empresas trabalham para a gente como suporte. Mas quem repatria são os advogados”, diz. Tudo com base na lei. No passado, era quase impossível chegar aos criminosos. Mas a justiça no mundo inteiro tem reconhecido o direito da vítima de identificar seus algozes e reparar o dano, inclusive o financeiro – caso de acionista lesado, ex-esposa passada para trás na partilha e nós, o povo, no caso da sonegação ou da corrupção.

“Havendo um processo judicial, mesmo que em outro país, a Justiça reconhece o direito de quebrar o sigilo da empresa sob sua jurisdição”, explica Marcelo.

Foi assim que escritórios parceiros da banca onde Marcelo trabalha repatriaram o dinheiro da corrupção no caso do juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, e do ex-prefeito Paulo Maluf, de São Paulo.

Marcelo não entra em detalhes por conta de cláusulas de confidencialidade, mas admite que seu escritório trabalhou no caso em que Ricardo Teixeira foi acusado de receber propina para favorecer emissoras de televisão na venda dos direitos de transmissão da Copa do Mundo. O suborno foi depositado numa conta de empresa aberta nas Ilhas Virgens Britânicas. Ricardo Teixeira fez acordo com a Justiça na Suíça, sede da Fifa, pagou multa milionária e se safou de uma condenação. Mas teve que se afastar do futebol profissional, e vive num autoexílio na Flórida, Estados Unidos.

Road Town não é a única coincidência que une a Globo a Ricardo Teixeira. Assim como o ex-presidente da CBF e dirigente da Fifa, a Globo também buscou refúgio naquele paraíso fiscal. Em junho de 1999, através de outra empresa offshore, a Globo abriu a Empire Investment Group Ltd., com capital de aproximadamente US$ 220 milhões.

Em 2001, a Globo comprou, através de sua matriz brasileira, a mesma empresa. Informou ao Fisco que buscava expansão no mercado internacional de TV, e omitiu o fato de que a empresa já era dela. Mais tarde, quando investigou a Globo, a Receita Federal descobriu a fraude.

O auditor fiscal Alberto Zile escreveu: “As operações arroladas dão a clara ideia de que vários atos praticados pela fiscalizada estavam completamente dissociados de uma racional organização empresarial e, consequentemente, de que a aquisição da sociedade empresarial nas Ilhas Virgens Britânicas foi apenas um disfarce de uma aquisição dos direitos de transmissão, por meio de televisão, da competição desportiva de futebol internacional, com intuito de fugir da tributação”.

A Empire era titular dos direitos de transmissão, comprados por outra offshore da Globo junto a uma intermediária da Fifa, a ISL. A Empire, apesar de possuir um bem tão valioso como o direito de transmissão da Copa do Mundo, funcionava sem sede própria nas Ilhas Virgens.

A Empire dividia o mesmo endereço da Ernst & Young Trust Corporation, com a qual compartilhava também a caixa postal. “Com essas informações, não resta dúvida, a Empire era só papel, não tinha atividade nenhuma”, diz o advogado brasileiro que trabalha em Road Town desvendando o que há por trás das offshores.

Quando cheguei a Road Town, através de um barco que faz a travessia de Saint Thomas, nas Ilhas Virgens Americanas, onde tem um aeroporto maior, fui procurar a Empire. “Nunca ouvi falar”, disse o funcionário de uma empresa de informática no térreo do prédio onde funcionava a Ernst & Young.

“Já prestei serviço para muitas empresas daqui, mas nunca soube que existisse essa empresa Empire. Duzentos e vinte milhões de dólares? É muito dinheiro…”, comenta o taxista Roy George, um dos poucos que aceitam se identificar num assunto “muito delicado”, como observa o dono de uma empresa vizinha da Empire.

Os documentos de fundação da Empire trazem apenas a assinatura de uma procuradora autorizada, Nancy E. A. Grant, e de uma testemunha, Hellen Gunn Sullivan. Eu procurei as duas, primeiro no antigo escritório da Ernst & Young, no Jayla Place. “Eles se mudaram”, informou a gerente da Appleby, empresa que também administra offshore (legal, como informa em seu site), que agora ocupa a metade do terceiro andar do edifício antes sede da EY.

A Ernest & Young foi para outro endereço, mais distante do centro, no luxuoso prédio Ritter House, ao lado da marina The Moorings. “Não conheço nenhuma delas”, diz a advogada que nasceu em Santo Domingo, República Dominicana, que me atendeu em pé, na recepção do escritório. Ao ser informada do assunto, fez questão de esclarecer: «Em Road Town, não administramos mais offshore. Somos uma empresa de contabilidade.»

É um fato. A EY transferiu todas as suas atividades de trust (administração por relação de confiança) para as Bahamas, e vendeu seus ativos (as empresas de papel) para a Tricor, que funciona no prédio do First Caribbean Bank. Carol, a gerente inglesa da Tricor, demonstrou incômodo quando me apresentei como jornalista brsileiro.

“O que você faz aqui?”, questionou, para em seguida dizer que Nancy, a procuradora da Empire (leia-se Globo), era sua antecessora na gerência da empresa. “Ela voltou para a Inglaterra, mas mesmo que estivesse aqui não poderia dar informação. Essas informações são fechadas”, disse.

Certamente, ela não sabe que a propriedade da Empire deixou de ser segredo quando o auditor Alberto Zile, a partir de uma denúncia vinda do exterior, vasculhou os documentos da Globo e descobriu que a Empire foi criada pela própria empresa brasileira. Segundo a Receita, o objetivo era sonegar impostos, o mesmo objetivo de milhares de empresas que se instalam por aqui.

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