Mídia

A peleja entre a fidelidade aos fatos e o jornalismo de aquário

Num tempo de desinformação como estratégia de negócios, jornalistas da velha guarda homenageiam Ricardo Kotscho e tentam sensibilizar novas gerações de que lugar de repórter é na rua

Repórter segue o técnico da seleção em 1974, em partida entre jornalistas e comissão técnica <span>(Arquivo Pessoal)</span>No ‘Estadão’, em visita do presidente Costa e Silva SP, meses antes do AI-5 (1968). À direita, uma década depois, como o chefe na ‘Istoé’, Mino Carta, e Lula, no ABC <span></span>Almoço durante reportagem para a Folha de S.Paulo nos garimpos de Serra Pelada,(anos 1980) <span>(Arquivo pessoal)</span>Mural repleto de carteirinhas e crachás, fixado numa parede do escritório de Kotscho, em sua casa <span>(Camilo Vannuchi)</span>

São Paulo – O repórter Clóvis Rossi conta que é amigo do repórter fotográfico Hélio Campos Mello no Facebook, mas ambos, no entanto, têm de recorrer a uma outra amiga em comum, Mariana Kotscho, para receber notícias do pai dela, Ricardo Kotscho, que não frequenta a rede social. Nada contra, ele mesmo ressalva. Kotscho assina o blog Balaio do Kotscho, no portal R7, e acompanha todos os comentários; é repórter da revista Brasileiros, que ajudou a fundar há quase sete anos na companhia dos amigos Nirlando Beirão e Campos Mello; e está duas vezes por semana no telejornal da Record News comandado por Heródoto Barbeiro. “Simplesmente não tenho tempo”, diz.

A atuação nas redes sociais não poderia ficar de fora em um seminário sobre jornalismo realizado na última sexta-feira (30) no auditório da Faculdade Cásper Líbero. O evento, pensado para celebrar 50 anos de carreira de Ricardo Kotscho, reuniu no mesmo sofá, num bate-papo de pouco mais de duas horas de duração, Kotscho, Mariana (a mediadora), Audálio Dantas, o fotógrafo Jorge Araújo, Rossi, Campos Mello e Eliane Brum – aos 48, a mais jovem da turma.  “Kotscho sempre foi para mim não apenas um colega de profissão, mas uma entidade”, disse Eliane.

Conversa vai, conversa vem, Rossi aproveitou o ensejo para agradecer ao professor Erasmo de Freitas Nuzzi, ex-diretor da Cásper, por apresentar o ex-aluno ao Correio da Manhã, no início dos anos 1960, onde debutou na carreira. E foi justamente Rossi quem levou Kotscho ao Estadão, em 1967.

Na mesa composta por profissionais que atravessaram a era do telegrama e da telefoto, do telex e do revolucionário fax para envio de material apurado, não restava dúvida: os avanços tecnológicos vieram para reforçar a profissão. A velocidade com que se pode pesquisar, apurar, produzir, veicular e propagar a informação, no entanto, não muda o axioma número um declamado por todos à plateia de admiradores e estudantes: “Lugar de repórter é na rua”.

Um argumento didático para tentar desviar, com alguma elegância, das comparações entre as redações de outrora e as de hoje. Kotscho é avesso a comparações. Mas admite: as duplas, repórter-fotógrafo, em longas jornadas nas ruas escasseiam cada vez mais. Assim como a receita básica de Rossi – “ler (se preparar), ver, ouvir, contar”. E todos concordam: proliferam cada vez mais os “caçadores de aspas”. Aqueles que, da redação ou nas “agendas”, vão atrás da pauta encomendada pelos frequentadores do aquário, lugar das empresas de comunicação onde prevalecem as ideias dos donos dos veículos.

E se outrora as redações eram ambientes de diversidade política, ideológica e de (in)tensos debates entre colegas, outra mudança detectada nos dias correntes é o pensamento do patrão contaminar a cabeça da maioria dos profissionais. Assim, se o repórter sai à caça e não acha as aspas “encomendadas” para ratificar a tese do aquário, o mais comum é a pauta cair.

O jornalismo de aquário, por sua vez, é um grande componente do fenômeno que Martins Costa identifica como “a tática da desinformação”, em seu programa Observatório da Imprensa no Rádio. Segundo ele, o leitor ou a leitora que têm visão crítica dos acontecimentos encontra no noticiário, sobretudo dos últimos 12 meses, um “estado de espírito negativo” que contamina o Brasil não como uma decorrência dos fatos, mas de um propósito central da atividade da imprensa hegemônica. “Certamente, há espaço suficiente nessa afirmação para a suspeita de que o observador pode estar sob influência de teorias conspiratórias, mas a leitura dos jornais nesse período indica claramente o desenvolvimento de uma campanha com objetivo de destruir a autoestima dos brasileiros”, constata Martins Costa.

Em sua análise, quando os meios de comunicação abandonam a objetividade para atuar como lobby, pode-se dizer que houve uma ruptura entre jornalismo e imprensa. “O núcleo tático desse procedimento é a imposição de meias-verdades, que produzem a desinformação geral; a desinformação estimula protestos, crises, decisões equivocadas de investidores, e − o mais grave − descrença no sistema democrático, como aconteceu na Alemanha nazista”, conclui ele no artigo intitulado Imprensa e jornalismo: nada a ver. A desinformação como tática, que pode ser lido na íntegra na página do Observatório da Imprensa.

Homenagem e causos

“Lugar de repórter é na rua.” Ricardo Kotscho é um repórter épico como a frase, declara Camilo Vannuchi, um dos organizadores da homenagem realizada na semana passada e curador de uma mostra fotográfica das várias fases do homenageado, que ficará em exposição durante este mês de junho no quinto andar do prédio da Cásper Líbero.

“Já naquela época, 1997 ou 1998, havia certa rebeldia naquela frase. Nós, jornalistas, já passávamos então mais tempo ao telefone do que na rua, e sentíamos o quanto isso era ruim. De repente, o clichê nos chacoalhava, como o refrão de uma canção de protesto, e nos impingia a nadar contra a corrente, a botar o bloquinho no bolso e ir fazer matéria onde as coisas acontecem, longe do ar condicionado da redação. E olha que nem o Google a gente conhecia no final dos 90. A rua, sim, estava sempre ali, para ser descoberta, observada, investigada”, escreve o curador, no texto de apresentação da exposição (leia íntegra mais abaixo).

“Na somatória, fico com a sensação de que a gente deveria ter mais encontros como esse. E, principalmente, mais repórteres como esse. Os encontros até que dá para providenciar. Já os repórteres, não é sempre que surge um desse calibre”, diz Vannuchi.

No evento, além das histórias lembradas pela turma do sofá, parte do público também provocou o homenageado a contar “causos” que ele, de livre e espontânea vontade, não gosta nem de lembrar.

Um dos provocadores foi o ex-dirigente metalúrgico do ABC Djalma Bom, também ex-deputado da primeira safra de parlamentares eleitos pelo PT, em 1982. Djalma pediu ao jornalista que contasse ao público sobre o episódio em que, na condição de assessor de comunicação da primeira campanha presidencial de Lula, em 1989, convenceu seu assessorado a ir ao Morumbi assistir São Paulo x Vasco, partida final do campeonato brasileiro.

“A campanha já estava legalmente encerrada, então seria uma forma de aparecer num evento de massa. Mas como Lula é corintiano, era para dizer a quem perguntasse que estava ali para acompanhar o filho, são-paulino roxo. Era um lugar privilegiado nas cativas, onde só ia a a nata do conservadorismo”, lembrou Kotscho.

Na primeira oportunidade, o candidato teve um ataque se sinceridade desportiva e disse a uma emissora de rádio – e todo mundo levava o radinho para o estádio – que estava ali porque, apesar de ser alvinegro em São Paulo, no Rio é Vasco. Tomou uma salva de vaias e xingamentos. E até hoje põe a culpa no assessor. Para piorar, o Vasco venceu por 1×0, gol de Sorato, num Morumbi com mais de 70 mil pessoas.

Na rua com Ricardo Kotscho

Lugar de repórter é na rua. Eis o clichê mais simpático do jornalismo. E o mais nostálgico, também. Especialmente quando os congestionamentos e a ordem para reduzir custos instigam ao uso preferencial do email e do telefone (por Skype, pra economizar, faça-me o favor). Apesar das circunstâncias, o clichê continua tão verdadeiro que, escrito ou falado, adquire um tom meio épico, de verso ou axioma, como se nascido para ser fixado na parede.
“Lugar de repórter é na rua”, li pela primeira vez num livro de Ricardo Kotscho, indicado por um professor no início da faculdade. Já naquela época, 1997 ou 1998, havia certa rebeldia naquela frase. Nós, jornalistas, já passávamos então mais tempo ao telefone do que na rua, e sentíamos o quanto isso era ruim. De repente, o clichê nos chacoalhava, como o refrão de uma canção de protesto, e nos impingia a nadar contra a corrente, a botar o bloquinho no bolso e ir fazer matéria onde as coisas acontecem, longe do ar condicionado da redação. E olha que nem o Google a gente conhecia no final dos 90. A rua, sim, estava sempre ali, para ser descoberta, observada, investigada.

Ricardo Kotscho é um repórter épico como a frase. Aos 66 anos, ainda vive na rua. Faz questão de saracotear por aí, colecionando histórias, hoje publicadas na “Revista Brasileiros” e no blog “Balaio do Kotscho” ou narradas na Record News. Foi correspondente internacional, chefe de reportagem, editor, diretor de jornalismo, assessor de imprensa, blogueiro, comentarista, e, a despeito do cargo que ocupasse, jamais deixou de ser repórter.
Sua sina começou há 50 anos, num 1964 de triste lembrança. Foi no final de maio, dois meses depois do golpe, que o jovem de 16 anos escreveu sua primeira matéria para a “Folha Santamarense”, um jornal de bairro recém lançado pertinho da sua casa. Logo seu passe foi comprado pela concorrente, a “Gazeta de Santo Amaro”, desta vez com carteira assinada. Aos 19 anos, Kotscho ostentava um crachá do Estadão quando desceu a Serra do Mar para cobrir a histórica enchente de Caraguatatuba, que deixou mais de 300 mortos no litoral paulista, em 1967 — mesmo ano em que se matriculou na primeira turma de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes, na USP, onde seria jubilado sete anos depois, com faltas demais e notas de menos, sem lenço nem diploma.

Desde então, cobriu a batalha da Maria Antônia, a construção de Itaipu, a gênese de Fittipaldi na Fórmula 2, a Copa de 1974 (enviado especial à Alemanha), a morte sob tortura do operário Manoel Fiel Filho e, em 1976, ainda não tinha 30 anos quando ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo por uma série sobre a boa vida dos superfuncionários do governo. Numa tacada, Kotscho publicava a primeira denúncia envolvendo privilégios de figurões do regime e tirava das sombras uma palavra até então obscura, usada como rubrica no Diário Oficial da União: mordomia.
Vieram outros três Esso, dois Vladimir Herzog, além dos troféus Cláudio Abramo, Carlito Maia, Comunique-se e outros. Em 2008, Kotscho foi um dos cinco brasileiros contemplados com o Troféu Especial de Imprensa da ONU. Trabalhou no “Jornal do Brasil”, na “Folha”, na “IstoÉ”, na “Época”, no SBT, no Canal 21, na TV Bandeirantes… Foi correspondente na Europa, integrou o time responsável pelo livro “Brasil: Nunca Mais”, cobriu as grandes greves do ABC, o movimento das Diretas Já, a corrida do ouro em Serra Pelada. Fez campanha eleitoral, cumpriu expediente no Palácio do Planalto, publicou 21 livros (sozinho ou em co-autoria), e nunca, jamais, se afastou do lugar que é seu por excelência: a rua.

Alguns momentos dessa jornada estão reunidos nesta pequena exposição em homenagem a seus 50 anos de jornalismo.

Camilo Vannuchi
(texto que abre a exposição de fotos na Cásper Líbero)