Revisionismo

Garzón: defesa da Lei de Anistia se vale de argumentos ‘totalmente oportunistas’

Juiz espanhol afirma que reparação do Estado às vítimas da ditadura e aos seus familiares precisa ser mais ampla e que é preciso acabar com ideia de que transição à democracia é guiada pela impunidade

FERNANDO BIZERRA JR/EFE

Juiz espanhol diz que não adianta Estado pedir desculpas se há uma imensa dívida a quitar

Brasília – O juiz espanhol Baltasar Garzón é mais conhecido como o magistrado que emitiu ordem de prisão contra o ex-presidente do Chile, o ditador Augusto Pinochet, pela morte e tortura de cidadãos, na década de 1980. Neste século, decidiu investigar os crimes do general Francisco Franco e acabou sofrendo o peso dos problemas da transição incompleta à democracia: foi processado e afastado do cargo.

Garzón possui uma trajetória mundial de atuação em processos diversos referentes a apurações de casos de genocídio, desaparecimento de pessoas e demais crimes de lesa-humanidade. Depois da atuação no Chile, ajudou a abrir caminho para processar e condenar agentes da última ditadura (1976-83) na Argentina.

Durante passagem rápida pelo Brasil, para participar de painel no Fórum Mundial de Direitos Humanos sobre a memória e a verdade, o magistrado destacou que por aqui são “totalmente oportunistas” os argumentos de que a Lei de Anistia ampara crimes cometidos por agentes do Estado durante o regime autoritário (1964-85), visão encabeçada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que em 2010 decidiu vetar a possibilidade de processar este tipo de violações.

Para Garzón, embora a Comissão Nacional da Verdade venha trabalhando bem, no sentido de conseguir chegar a algumas conclusões sobre o que ocorreu com vítimas da ditadura, a sociedade brasileira precisa se organizar melhor para lutar contra a impunidade e fazer com que a reparação do Estado seja mais ampla.

Abaixo, trechos das respostas dadas por Garzón a jornalistas e à plateia do Fórum Mundial de Direitos Humanos.

A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário Nunes, disse que não vai pedir desculpas para os familiares das vítimas da ditadura no Brasil porque ainda considera que há muito a ser feito pelo Estado brasileiro. O que o senhor acha dessa colocação?

A ministra tem razão. Por que pedir perdão se temos a obrigação de investigar, facilitar essa investigação efetiva, independentemente de todos? Esses crimes são cometidos pelo poder exercido pelo Estado e exigem reparação. O problema é que sempre que se vive um processo de transição de um sistema repressivo para um sistema democrático, esse período de transição tende a se confundir com mecanismos de impunidade. As pessoas confundem transição com impunidade, mas não é bem isso que queremos. Queremos olhar para o futuro, mas nos falta um elemento universal para isso que é resolver o passado.

Sua experiência mostra que isso tem sido observado em muitos países, além do Brasil?

Sim. O próprio Nelson Mandela, que morreu no dia do aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, dizia, quando indagado se estava realizado em sua missão, que, por mais que tivesse tentado, ainda não tinha conseguido obter tudo aquilo que seu povo precisava em termos de reparação e proteção de direitos, que só serão obtidos com o passar dos anos. A proteção dos direitos é muito questionada. São muitos os países que não assumem a realidade, mesmo atualmente. Olhamos para a Argentina, para o Brasil e há sempre uma confusão.

Como o senhor avalia o entendimento de juristas e outros profissionais que defendem, no Brasil, que a Lei da Anistia precisa ser mantida conservando o chamado “pacto” feito durante a votação?

São argumentos totalmente oportunistas. Uma negação ou revivencionismo quando existe uma linha de combate por parte de segmentos importantes da sociedade contra essa impunidade. Um Estado democrático não pode suportar isso, que é uma espécie de negação de tudo o que aconteceu. Na Espanha, que suportou 40 anos de ditadura, há uma negação, uma vitimização. Isso se trata de apoderar-se de direitos humanos para consolidar a impunidade.

Como o senhor vê a situação de proteção e reparação às vítimas no período ditatorial observado na Espanha, seu país?

No caso espanhol um intento de reparação histórico foi produzido em 2007, por meio de uma lei de memória histórica, prática e fácil. Mas o governo diz que não há dinheiro para fazer a reparação às vítimas ou aos seus familiares. Há dinheiro para outras coisas, mas não para reparar as 150 mil vítimas. É uma vergonha, uma agressão, uma espécie de prolongação de impunidade e cinismo na atuação legal do Estado. Mas acho que em relação à América Latina, a Corte Interamericana deu um avanço importante a nível mundial, ao ratificar a posição de que esse mecanismo é de vitimização, de consolidação oculta, mas claramente visual, do mecanismo da impunidade.

Como o senhor avalia os trabalhos realizados pelas comissões da verdade instaladas em vários países, inclusive no Brasil?

A comissão está funcionando bem na Colômbia, onde há um processo de negociação, e também aqui no Brasil. Mas a questão é que essas comissões, na América Latina, ainda não se definiram como uma ação da Justiça, e sim como ação complementar. São comissões que estão dando uma resposta para a reparação e para a garantia da verdade aos parentes das vítimas, mas o Estado, como um todo, precisa avançar mais em relação a esse tema.

Se pudesse dar um conselho, como o senhor entende que deve ser o papel da sociedade de um modo geral neste processo?

É importante fazermos uma autocrítica muito segura às atitudes observadas até agora. Somos demasiados cúmplices por esse estado de coisas e é preciso protestar mais, defendendo os direitos da sociedade e questionando as ações do Estado. Quando não fazemos isto, estamos descumprindo claramente princípios constitucionais que nos obrigam a lutar pela defesa das vítimas da ditadura.

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