Reparação

Autoridades e especialistas pedem revisão da Lei da Anistia

Apelo foi reforçado durante painel do Fórum Mundial de Direitos Humanos, em Brasília, com a presença de familiares de vítimas de ditaduras em vários países

Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr

Maria do Rosário disse que é preciso concluir histórias da ditadura. “O Estado não merece, ainda, perdão”

Brasília – A rediscussão da Lei da Anistia com punição para os agentes do Estado responsáveis por torturas às vítimas da ditadura foi a principal reivindicação feita hoje (11) no Fórum Mundial de Direitos Humanos. Debate sobre o tema “Memória, Verdade e Justiça” levou à posição unânime que, apesar dos avanços obtidos até agora na reparação dos erros cometidos, o Brasil precisa caminhar mais na busca pelo seu passado e se organizar para fazer com que os culpados sejam julgados.

O evento contou com a participação da ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário Nunes, o magistrado espanhol Baltasar Garzón, a advogada Rosa Cardoso, da Comissão da Verdade, e uma das representantes do grupo de Mães da Praça de Maio, a argentina Estela Carlotto.

A maior parte da discussão teve como foco a necessidade de ser revista posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010, quando os ministros consideraram que houve um pacto social e político durante a sanção da referida lei, permitindo a impunidade dos agentes do Estado responsáveis pela tortura e pela perseguição a militantes políticos.

“Estamos percorrendo um longo caminho, com a ajuda das famílias, na busca pelos corpos, na reconstituição das histórias dos desaparecidos e para chegar ao nome dos assassinos, mas sabemos que apenas esse resgate e a reparação do Estado às vítimas não basta. É preciso judicializar a questão e quem discute a punição ou não dos responsáveis por estes crimes de lesa-humanidade é o Judiciário”, afirmou Rosa Cardoso, ao falar do trabalho que vem sendo realizado pela Comissão da Verdade.

Um bom sinal, de acordo com a advogada, foi a posição externada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, no sentido de que os crimes cometidos pela ditadura são “imprescritíveis”. A mudança foi considerada fundamental, uma vez que o antecessor de Janot, Roberto Gurgel, encampou em 2010 a visão da maioria dos ministros do STF.

A ministra Maria do Rosário, ao abrir os trabalhos, anunciou a revisão da versão dada anteriormente pelo Estado na morte de um preso político desaparecido, o militante Arnaldo Cardoso Rocha, que integrava a Aliança Libertadora Nacional (ALN). Durante a exumação do corpo de Rocha, dois meses atrás, em Minas Gerais, os peritos descobriram o caixão submerso em uma área que ficou inundada durante todo esse tempo. Isso levou à conservação de tecidos do cérebro e de outras partes do corpo da vítima, o que permitiu que fossem tiradas conclusões mais precisas.

O resultado do laudo contestou a versão oficial dos militares, de que Arnaldo Rocha tinha morrido em confronto com a polícia depois de ter reagido fortemente. Segundo o estudo feito pelos peritos, o militante apresentou lesões ósseas só observadas em pessoas que sofreram forte impacto e foram torturadas e os indícios mostram que ele estaria suspenso, imobilizado e com o corpo pendurado em algum local, no momento em que recebeu os tiros.

‘Sem desculpas’

“Eu gostaria de pedir desculpas à família de Arnaldo Rocha pelo Estado, mas não vou fazer isso. Acho que desculpas só não bastam. O Estado deve não só reparar simbolicamente, mas ser mais contundente nessa reparação. Ainda que eu acredite que devemos abaixar a cabeça diante dos mortos e desaparecidos, acho pouco pedir perdão. Não se pode matar e pedir perdão. Ainda precisamos concluir essas histórias e o Estado não merece, ainda, perdão nos dias atuais”, enfatizou a ministra.

Segundo a esposa do militante, Iara Rocha, que recebeu o laudo oficialmente no meio da palestra, o resultado faz parte da luta que sua família trava há 40 anos. Ela disse, ainda, que apesar de estar expondo a história do marido, acha importante contá-la, como forma de estimular outras famílias que possuem casos semelhantes de pessoas desaparecidas a pressionarem para que seja descoberta a verdade e, até mesmo, para contestar versões oficiais.

“Encontramos apoio no Ministério Público, na Comissão da Verdade, e está em andamento uma investigação criminal para responsabilizar os agentes responsáveis pelo crime. Nossa atitude aqui ainda é extremamente dolorosa, mas não podemos nos calar. Precisamos seguir até o fim”, destacou, em meio a aplausos.

O deputado Nilmário Miranda (PT-MG), criador da comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e primeiro titular da secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, lembrou que quando a Lei da Anistia foi aprovada, em 1979, o Congresso contava com vários senadores biônicos e a legislação terminou garantindo a impunidade aos torturadores, ao ponto de o então senador Teotônio Vilela dizer que, por conta dessa lei “a ditadura serviu-se da anistia”. “Criaram a ficção de que houve um pacto nacional para aprovar essa anistia, mas isso não existiu. Foi um suposto pacto que se deu num tempo em que vivíamos sob o paradigma da impunidade e do esquecimento. Hoje vivemos diante de um novo paradigma, o da reparação e da memória”, afirmou.

De acordo com o juiz Baltasar Garzón, em países que passaram por ditaduras tem sido comum, quando se tem um processo de transição de um sistema repressivo para um sistema democrático, como no Brasil, muitas vezes essa fase resultar em impunidade. Responsável por acusações e prisões contra torturadores em Argentina, Chile e Espanha, ele alertou que a sociedade precisa reagir. “Para que possamos olhar o futuro, nos falta um elemento universal que é resolver o passado”, frisou.

Compromisso e luta

Estela Carlotto, uma das criadoras do grupo de Mães da Praça de Maio, na Argentina, aproveitou para contar sua própria vida e a luta para descobrir detalhes sobre o desaparecimento da filha, Laura, militante política universitária, que teve um filho quando presa. “Meu neto tem hoje 35 anos e não tenho notícias de onde esteja. Acho que temos o compromisso de contar a todos nossas histórias e batalhar para que não se repitam. A busca pela Justiça é um direito pelo qual não podemos deixar de exigir”, enfatizou.

Para o advogado argentino Julián Froidevaux, o fórum organizado pelo governo federal deve servir para mostrar os entendimentos que vêm sendo observados nas cortes internacionais de direitos humanos sobre o tema, de apoio à revisão do passado com punição a agentes de regimes autoritários. “Precisamos compreender que estamos vivendo um processo em que é importante a responsabilização de todos e que esse é um grande passo para a humanidade”, ressaltou.

O representante da Rede Brasil, Memória, Verdade e Justiça, Francisco Celso Calmon, aproveitou para reclamar que, além da impunidade aos responsáveis pelos crimes, existe no Brasil uma demora de aproximadamente cinco anos para reparação de uma vítima da ditadura a partir do momento em que é feito o pedido ao Estado. “O Estado ditatorial jamais merece ser perdoado, mas o Estado democrático de direito pode reparar, sim, os crimes cometidos e ajudar a fazer justiça”, colocou.

Ao final do encontro, documento endossado por mais de 140 entidades pedindo a revisão da Lei da Anistia – incluindo várias comissões da verdade instituídas em estados e municípios brasileiros – foi entregue aos coordenadores do fórum para ser anexado às conclusões do evento e encaminhado ao Congresso Nacional.