Regulamentação

Audiência sobre Marco Civil da Internet polariza interesses de consumidores e empresas

Deputados divergem, ouvem empresários de teles e usuários, mas debate termina sem consenso sobre teor que deverá ter o PL quando encaminhado ao plenário

rodolfo stuckert/câmara dos deputados

Matéria tramita com urgência e, por conta dos atrasos para ser votada, tem trancado a pauta das sessões ordinárias

Brasília – Uma guerra de Titãs, onde muitos divergiram, vários expuseram suas ponderações, poucos apresentam pontos em comum, mas nenhum resultado concreto foi apresentado. Assim foi a audiência pública realizada hoje (6) na Câmara dos Deputados para discutir o Projeto de Lei (PL) 2126/11, referente ao Marco Civil da Internet. A matéria tramita em caráter de urgência e, por conta dos atrasos para ser votada, tem trancado a pauta das sessões ordinárias da Casa. Entre os principais protagonistas das divergências estão o relator do PL, deputado Alessandro Molon (PT-RJ), e o líder do PMDB na Câmara, deputado Eduardo Cunha (RJ). Mas nos bastidores o que se fala é que a briga é outra e passa por um round diferente, envolvendo consumidores versus grandes empresas de telecomunicações.

Na prática, Alessandro Molon, apesar de concordar em abrir mão de alguns itens, considera outros inegociáveis. Já Eduardo Cunha levou vários representantes de empresas de telecomunicações e argumentou que, se for votado da forma como está, o PL vai prejudicar o país, encarecer custos com a internet e inibir a entrada de novos investimentos.

A primeira celeuma se deu em função das declarações de Molon, que sugeriu a inclusão da matéria na pauta do plenário em caráter imediato. Apesar de reiterar várias vezes que tem a intenção de negociar pontos de consenso entre os parlamentares, Molon considera a questão da privacidade dos usuários, a garantia da liberdade de expressão e a neutralidade da rede como itens que não devem ser alterados no escopo da matéria – questões, justamente, tidas por muitos dos parlamentares como pontos vagos dentro de uma discussão de caráter tão amplo.

Segundo o relator, com a neutralidade da rede, as operadoras de telecomunicações ficam proibidas de oferecer aos seus usuários pacotes com serviços diferenciados, como só e-mail ou só acesso a redes sociais ou vídeos. Mas no tocante ao direito à privacidade em si, o deputado afirmou que a intenção do seu texto é proteger a informação do número de brasileiros na internet – estimado atualmente em aproximadamente 100 milhões.

Apesar de sua proposta contar com apoios de autoridades como o do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e dos deputados do PSol, que fecharam questão pela aprovação da matéria da forma como se encontra, quando se fala no PMDB e em opiniões isoladas de parlamentares de partidos diversos, a situação é outra.

‘Intervencionismo estrutural’

O principal capitão dessa divergência, o líder peemedebista da Casa, Eduardo Cunha, disse durante a audiência que o projeto, da maneira como está, representa uma forma clara de “intervencionismo na infraestrutura brasileira”. Cunha, ao sair da audiência, evitou tecer comentários sobre indagações feitas pelos jornalistas de que ele estaria tentando conciliar pontos do texto dentro de solicitações feitas pelas teles e pela TV Globo. Mas ressaltou que no tocante à questão da neutralidade da rede não concorda com o fato de esse princípio ter como objetivo impedir as operadoras de telecomunicações de oferecer aos usuários pacotes com serviços diferenciados.

Segundo Cunha, da forma como está o teor do texto, a proposta aumentará os valores pagos hoje pelos cidadãos pela internet. Ainda por cima, acrescentou, servirá para desestimular os investimentos feitos pelas empresas no setor. “Dizer que todos terão o mesmo direito é um discurso falacioso, é o mesmo que dizermos que todos vão ter energia elétrica igual, mesmo que use cinco aparelhos de ar-condicionado ou uma lâmpada. Sabemos que não apenas o valor pago por quem usa uma lâmpada, neste caso, será injusto, como também a pessoa se sentirá estimulada a usar ar-condicionado”, frisou, ao completar que, “para oferecer infraestrutura semelhante para todos é preciso oferecer a melhor infraestrutura possível”.

Outro argumento apresentado pelo líder peemedebista – que foi o autor do pedido de audiência pública para esclarecer os pontos do PL – foi de que a matéria, conforme seu ponto de vista, afastará investidores da área no Brasil. “Não podemos passar uma imagem para o mercado externo de que no Brasil o investimento de infraestrutura estrangeiro não terá retorno. Isso, justo num momento em que pretendemos trazer investimento para petróleo, aeroportos e ferrovias”, afirmou.

Por parte das operadoras de telecomunicações, o representante do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal – Sinditelebrasil, Eduardo Levy, disse que o princípio da neutralidade de rede vai “reduzir as ofertas, inviabilizar a gestão da rede e aumentar os custos ao consumidor”. Para Levy, caso venha a ser aprovado da forma como está, o projeto de lei impedirá que usuários com menos recursos tenham acesso à banda larga, já que os valores gastos pelo serviço deverão aumentar muito. “Ofertamos hoje a possibilidade de inclusão com ofertas de menos de R$ 1 por dia, sendo que a qualidade já é garantida com padrões mínimos estabelecidos pela Anatel. Isso acabará com o projeto da forma como está hoje”, acentuou.

Levy garantiu que não existem recursos suficientes no mercado para suprir a demanda de infraestrutura, caso o projeto seja aprovado com o teor atual. “Os R$ 25 bilhões aplicados pelo setor, hoje, não são infinitos. As ofertas são limitadas. A rede não é infinita – quem usa mais deve pagar mais, como é com a água, como é com a luz”, defendeu, sendo criticado por vários dos participantes do evento.

Direito à liberdade

Nem tanto ao mar nem tanto à terra, o professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais, Marcos Bitelli, não defendeu estritamente as ideias do deputado Eduardo Cunha, mas criticou o texto do PL na parte referente ao princípio da neutralidade da rede. Bitelli disse acreditar que a neutralidade, da forma como está, pode ser confundida com a proibição à liberdade de serem oferecidos diferentes pacotes e, em razão disso, induzir ao entendimento de que todos precisem pagar mais, para ter acesso igualitário à internet.

Também no quesito neutralidade, um dos destaques do debate foi o depoimento do diretor de Relações Governamentais da empresa fabricante de equipamentos para internet Cisco, o executivo Giuseppe Marrara. “A lei precisará permitir a gestão da rede e o gestor da rede deverá ter o direito de priorizar, por exemplo, ferramentas como telemedicina ou educação a distância. Não falo aqui em métodos que impeçam ou estimulem concorrências, mas a necessidade de que o PL seja calcado em princípios básicos e, ao mesmo tempo flexíveis, de forma que seja possível trabalhar e facilitar a vida dos usuários para não congelar a internet”, colocou.

No quesito segurança, o delegado da Polícia Federal João Vianey Xavier Filho disse que o projeto, em sua opinião, pode vir a prejudicar a investigação policial, uma vez que o provedor de internet que ficará responsável pela guarda de dados pessoais dos usuários e do registro de acesso a aplicações de internet só será obrigado a repassar essas informações mediante ordem judicial, ao contrário do que já acontece atualmente. Filho explicou que, hoje, a legislação já garante que o delegado e o Ministério Público consigam ter acesso aos dados cadastrais dos investigados por meio de solicitações feitas a empresas de telefonias e provedores de internet.

“Trata-se de uma demanda simples, mas que tem facilitado bastante as nossas investigações. E, com a aprovação do texto, passará a ser judicializada”, ressaltou. “O delegado só não explicou por que existem tantas críticas e reclamações judiciais sobre abusos cometidos pela Polícia Federal e Ministério Público no manuseio desse tipo de acesso”, rebateu o professor de Ciência de Tecnologia da Informação da Universidade de Brasília, Juliano Amorim, que também acompanhou o debate.

Ricos e pobres

Não foi esta, no entanto, a versão defendida por representantes dos consumidores e acadêmicos. O professor da Universidade Federal do ABC Sergio Amadeu, afirmou que  é justamente esse princípio da neutralidade que garantirá uma internet livre para todos. “Enquanto no mundo inteiro tenta-se mudar o jeito que a internet funciona, o marco civil garante que a internet continue livre. Para isso, é preciso manter este item no texto”, ressaltou. Amadeu destacou que “quando as empresas de telecomunicações querem quebrar a neutralidade, querem impedir que todos os internautas tenham multimídia na internet”. E foi ainda mais enfático, ao destacar: “Não pode existir uma internet para ricos e uma internet para pobres”.

O representante do Comitê Gestor da Internet (CGI), Demi Getschko, também fez uma comparação interessante que chamou a atenção dos parlamentares presentes à audiência. “Quando se tem um prédio com vários elevadores, todos eles são neutros. Ninguém é impedido de usar um elevador. A neutralidade não tem nada de oculto. Deveríamos ser todos a favor dela”, acentuou.

O debate acalorou as opiniões favoráveis e contrárias ao texto de Molon. Ivan Valente, líder do Psol (SP), afirmou publicamente que ele e seu partido vão apoiar em caráter integral a proposta do Marco Civil da Internet. Valente disse que seu partido considera que o PL garantirá a liberdade de expressão na internet, bem como a privacidade dos usuários e a neutralidade da rede mundial de computadores. De acordo com ele, embora de autoria do Executivo, a matéria foi formulada “com a participação e o apoio da sociedade civil e isso é muito importante para o país”, numa crítica direta às empresas de telecomunicações que, a seu ver, estão trabalhando na defesa de seus interesses.

Na mesma linha, o deputado Paulo Henrique Lustosa (PP-CE) frisou que o texto atual não impede a contratação de pacotes de internet com velocidades diferentes. Sua opinião foi seguida pela do deputado Domingos Sávio (PSDB-MG), para quem é fundamental que todo o conteúdo venha a ser oferecido com a mesma velocidade contratada. “Caso contrário, daqui a pouco, o consumidor vai ter de começar a pagar por acesso a cada site e sites mais independentes, por exemplo, poderão virar verdadeiras tartarugas.”

Mas, mesmo com tantos depoimentos feitos em plenário ou rebatidos em comentários feitos em torno da reunião, ficou difícil dizer como pensam os parlamentares de um modo geral, atualmente, e qual a tendência de votação do PL depois da discussão sobre o tema na audiência pública. Os deputados continuaram demonstrando confusão, diferenças de ideias e, inclusive, dúvidas quanto a pontos do texto – o que poderá contribuir para atrasar outra vez a votação da matéria para a próxima semana.