Debate

Lula critica liderança da ONU e defende nova governança global

Segundo ex-presidente, Nações Unidas 'não produzem nada de novo desde 1948' e o mundo precisa de um organismo em que Brasil, México, África do Sul, Nigéria e Egito tenham poder de decisão

Heinrick Aikawa/Instituto Lula

A liberiana Leymah Gbowee, Nobel da Paz, em debate com Lula: “A face da pobreza é a face da mulher”

São Paulo – O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou hoje (11) Barack Obama pelas ações de espionagem por parte do governo norte-americano e atribuiu as ações arbitrárias dos Estados Unidos a uma ausência de democracia nos organismos multilaterais tradicionais. “Nós precisamos levar a sério a democracia neste mundo globalizado. Nós precisamos discutir a governança global. Pode, por acaso, o senhor Obama e seu sistema de inteligência ficarem bisbilhotando as conversas da nossa presidenta? Em nome de que democracia? Qual foi a decisão judicial que deu permissão? Qual foi o delito que Dilma cometeu?”

O ex-presidente afirmou que uma de suas prioridades, na condição de ex-chefe de Estado, é ajudar países do continente africano a obter ajuda e financiamento para a promoção do desenvolvimento local. “As pessoas falam que não há dinheiro, mas só com a crise de 2008 o sistema financeiro já consumiu US$ 9,5 trilhões de dólares. Uma parte desse dinheiro poderia ser colocada a serviço de desenvolver a África. Investir em máquinas, em agricultura, em comércio, quem sabe pudesse gerar até consumidores para os produtos sofisticados que eles produzem na Europa e nos Estados Unidos”, disse.

A ausência de regulação sobre o sistema financeiro e de medidas para acabar com os paraísos fiscais foi lembrada como expressão de inoperância. “Eu a vi a (primeira-ministra alemã) Angela Merkel defendendo a regulação do sistema financeiro esses dias, mas isso eu já havia defendido na primeira reunião do G-20, em 2009, quando ainda era presidente.”

Ele lembrou ainda decisões unilaterais dos Estados, como a invasão do Iraque, “que já consumiu quase US$ 2 trilhões”, a operação que culminou com a morte do ex-presidente da Líbia, Muamar Kadafi, a tentativa de intervenção na Síria e também medidas no campo econômico e comércial: “Quem decidiu que a moeda que regula o comércio mundial é o dólar? Quem deu a um país o poder de dizer ‘eu vou cortar subsídios de US$ 86 bilhões’, e estourar as bolsas de todo mundo, e o dólar despencar em todo lugar como despencou no Brasil? Onde decidimos que em nome de interesses de um Estado nacional se pode tomar decisões que prejudiquem o mundo inteiro?”

Lula teceu ainda duras críticas à parcialidade da Organização das Nações Unidas desde sua criação. “Por exemplo, a mesma ONU que criou o Estado de Israel em 1948, por que não cria o Estado Palestino?” E disse acreditar quer parte dos conflitos africanos poderia ser resolvida se a ONU interviesse logo. “Se tivesse uma forte diplomacia, respeitabilidade e, onde fosse o caso, colocasse as forças de paz para ajudar. Não tem nenhuma decisão”, afirmou o ex-presidente, defendendo uma governança global em que a África participe das decisões, com a África do Sul, a Nigéria e o Egito, e a América Latina, com o México e o Brasil. “Por que a Índia não está, o Japão não está? Os mesmos, desde 1948, decidem as coisas no mundo, e desde 1948 não acontece nada de diferente no mundo.”

Rádio Brasil Atual: Lula defende que ajuda externa deve respeitar realidade e cultura locais. “Não podemos repetir os erros dos colonizadores e de ONGs que foram para a África tentando impor o que os africanos têm fazer… A Vale está explorando minérios na África. Ótimo. Agora, é preciso colocar os negros para ocupar os cargos de chefia”. Ouça a reportagem de Cláudia Manzano.

 

Brasil e África

O discurso do ex-presidente foi feito durante o debate “Um mundo sem fome: estratégias de superação da miséria”, realizado pela revista Carta Capital e pelo Instituto Lula. No evento, o representante da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), Mafa Chipeta, elogiou os esforços do governo brasileiro e do ex-presidente em levar investimentos para os países africanos.

“Quando se pensa em soluções para a pobreza não se pode falar em caridade. Na África, é impossível pensar em políticas sociais sem discutir crescimento econômico”, argumentou, lembrando que os programas brasileiros de transferência de renda – como o Bolsa Família – são uma referência pelos impactos que produz na cadeia de desenvolvimento. A ministra do Desenvolvimento Econômico e Social e Combate à Fome, Tereza Campello, observou que, de cada R$ 1 investido no programa – que já tirou 36 milhões de pessoas da extrema pobreza –, R$ 1,40 retorna para as economias locais e do país. “Espero que, em 10 anos, possa voltar aqui para contar o sucesso da África no combate à fome, como está fazendo o Brasil”, disse Chipeta.

A ativista Leymah Gbowee, Prêmio Nobel da Paz em 2011 por sua atuação no movimento que levou ao fim da guerra civil na Libéria, destacou o papel das mulheres nas ações de combate à pobreza. “São elas as mais afetadas, as que mais sentes as dores de seus filhos e famílias e as mais fortes para liderar o enfrentamento dos problemas”, ressaltou. “A face da pobreza é a face da mulher.”

Lula voltou a criticar os que tentam “negar” a democracia e a política, em meio às recentes manifestações ocorridas no Brasil. “Não é possível construir democracia se a gente negar a essência da democracia, que é a existência de partidos políticos organizados. O Congresso Nacional tem muito político ruim? Certamente. Mas o Congresso é a cara da sociedade no dia da eleição. Daqui a um ano podemos mudar todo mundo – e mudar com cuidado, para não ficar pior”, assinalou.

E reforçou sua tese associando-a aos avanços sociais alcançados pelo país. “Nunca o país exerceu tanto a democracia como tem exercido hoje, e nunca o país teve o padrão de vida que se tem hoje”, comparou. “É pouco? É pouco. Mas já subimos um primeiro degrau. O povo vai para rua? Ótimo. E todas as faixas que a gente vê a juventude carregando a Dilma já carregou, por isso foi presa, torturada. A gente tem de saber disso, e a gente tem de saber que quando a gente comer o contrafilé, o próximo passo é a gente querer o filé.”

Leia também

Últimas notícias