Ministério Público

Gurgel deixa PGR com herança de contradições e acusado de prevaricar

Em quatro anos de gestão, a encerrar nesta quinta, procurador-geral da República engavetou processos, emitiu pareceres contestados, embrulhou o rito dos trabalhos do MP e foi acusado de prevaricação

Lia de Paulo/Senado 3/8/2011

Gurgel é cumprimentado por Demóstenes, após aprovação de mais dois anos de gestão na PGE pelo Senado, em 2011

Brasília – O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, deixa o cargo nesta quinta (15), depois de quatro anos de gestão marcados por um sem número de contradições. Escolhido para a PGR em 2009 e reconduzido em 2011, Gurgel adotou estilo centralizador. Elogiado por alguns setores, também foi responsável por ações que até hoje suscitam debates, como o aumento do número de autorizações para telefones grampeados durante investigações de promotores e procuradores e a emissão de pareceres contestados por especialistas.

Aos 58 anos, Gurgel sai dizendo-se frustrado por não poder participar do final do julgamento final da Ação Penal 470 – a do “mensalão” – e dá a entender que pretende antecipar a aposentadoria (faltam 12 anos para aposentadoria compulsória, aos 75). Perante colegas, é tido como o homem que embrulhou o rito dos trabalhos da procuradoria com a participação constante de sua mulher, a também procuradora Cláudia Sampaio, e provocou grande confusão na distribuição de processos.

Nas últimas semanas, em função da sua saída, o procurador teve intensa rotina de trabalho no gabinete, localizado no “Brindeirão”, prédio em vidro azulado que funciona como sede da PGR – que ganhou esse apelido pelos servidores do Judiciário e advogados numa referência ao ex-procurador Geraldo Brindeiro, em cuja gestão a obra, tida como suntuosa, foi construída na década de 90. Foram encaminhados por Gurgel pareceres ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a abertura de processos contra cinco deputados, oito senadores, uma governadora – Roseana Sarney, do Maranhão – e dois ex-governadores, o casal Rosinha e Anthony Garotinho, do Rio de Janeiro.

O procurador-geral da República também apresentou um sem número de pedidos de arquivamento de processos por prazos prescritos. Um desses casos, por exemplo, envolvia o senador e ex-governador do Paraná, Roberto Requião (PMDB-PR). “É um esforço para que quem vier a me suceder tenha um mínimo possível de estoque”, afirmou. Essa mudança de postura não serviu, no entanto, para amenizar sua imagem perante os críticos.

Conforme relatório do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em março de 2012 existiam 4.346 processos parados em sua mesa. “O Ministério Público já é visto como um problema em relação à morosidade que dá aos trabalhos de emissão de pareceres, o que já ajudou muito político com rabo preso a ficar solto porque, quando o processo começou a andar, o réu já tinha mais de 70 anos. Na gestão dele (Gurgel) essa prática se multiplicou”, criticou um procurador que atua no Distrito Federal e preferiu não se identificar.

A gestão de Gurgel na PGR foi responsável, da sua posse até maio deste ano, pela autorização de escutas em cerca de 16.400 telefones para investigações de promotores. O mesmo relatório com esses dados também mostrou que 292 e-mails foram monitorados durante a investigação de 9.558 pessoas, de 2009 até agora. “Não existe uma rotina de inspeção dos grampos usados nas investigações realizadas pelo Ministério Público”, afirmou o conselheiro do CNMP Fabiano Silveira.

Atraso e prevaricação

Como se não bastassem tais números, o Procurador-Geral da República atrasou pareceres sobre acusações de improbidade envolvendo políticos que passam pelo ex-governador de Roraima, ex-ministro e atual senador Romero Jucá (PMDB) e o ex-governador do DF José Roberto Arruda (DEM). Nos últimos dias, Gurgel foi alvo de representação feita contra sua pessoa junto ao CNMP por “prevaricação”, por ter deixado esperar tanto tempo para avaliar o caso de investigação da Operação Vegas, da Polícia Federal.

A operação teve início em março de 2008 em virtude do vazamento de informações sobre a deflagração de uma operação policial e da tentativa de cooptação de um policial federal da Superintendência Regional em Goiás por membros de organização criminosa. Depois da Vegas, a PF desencadeou a Monte Carlo, dois anos depois, que revelou o esquema mafioso envolvendo fraudes e licitações em jogos e máquinas caça níqueis no Centro-Oeste. O caso levou à prisão do empresário Carlos Cachoeira e à cassação do senador Demóstenes Torrres (DEM-GO).

Segundo o autor do pedido de representação, procurador-regional da República Manoel Pastana, há “indícios fortíssimos” de que Gurgel teria prevaricado ao engavetar as investigações, em 2009. Embora não seja apresentada prova concreta sobre a denúncia feita contra o procurador geral da República, Manuel Pastana destacou, no texto do documento, que as apurações da Vegas terminaram sendo concluídas durante a Operação Monte Carlo, em 2011.

Essa ofensiva aprofundou investigações iniciadas em 2009, dentre as quais, a ligação entre Torres e Cachoeira. Uma das suspeitas levantadas chegou a apontar a influência da dupla sobre jornalistas com peso na cobertura política, como Policarpo Jr., da revista Veja, que chegou a apontar Demóstenes como “mosqueteiro da ética”.

De acordo com Pastana, essa relação já era observada na Operação Vegas, mas Gurgel resolveu, na época, não enviar nada ao STF. “O período de mais de três anos sem encaminhamento de um caso resultante de investigação da Polícia Federal pelo MP ao Supremo não é razoável. Não posso ficar com algo assim parado em meu gabinete por mais de 30 dias, pois precisamos dar andamento neste prazo. Ou envia-se de volta à polícia para novas diligências, ou se denuncia ou arquiva-se”, acusou.

Erros de gestão

Gurgel disse que não encaminhou pedido ao STF porque considerou que as investigações teriam mostrado apenas “desvios no campo ético”, tidos por ele como insuficientes para a abertura de ação penal. Mas, nessa mesma seara, ele recebe queixas dos colegas pelo fato de, em sua gestão, processos tidos como mais emblemáticos não terem sido distribuídos para outros sub-procuradores-gerais – o que teria levado ao acúmulo de trabalho observados atualmente na PGR.

Uma das principais reclamações é relacionada à parceria que sedimentou com a própria mulher, na avaliação dos processos e na redação de pareceres. Considera-se, no Ministério Público, a competência da procuradora Cláudia Sampaio, mas os dois passaram a ser chamados de “casal real” dentro da PGR e causaram insatisfações variadas.

Não à toa, portanto, os três procuradores indicados para sua sucessão propuseram, caso venham a ser escolhidos, a realização de um programa de gestão para impor maior eficiência aos trabalhos da PGR. A promessa é vista com bons olhos por procuradores mais velhos e respeitados pelos pares, como Ana Lúcia Amaral, hoje aposentada. “Gurgel cometeu um erro administrativo e estratégico ao concentrar tantos processos com a subprocuradora-geral Cláudia Sampaio ou com ele próprio”, disse.