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Após chutar traseiro do Brasil, ‘homem mau’ da Fifa recebe título de cidadão paulistano

Secretário-geral da entidade foi poupado de críticas ao representar Joseph Blatter em homenagem. Presidente da CBF afirma que desalojados da Copa são questão do governo

câmara municipal de sp

Valcke (c): “Esse título é um simbolismo, é também um sinal que a cidade acolhe o presidente Joseph Blatter”

São Paulo – A política brasileira voltou a mostrar hoje (10) ter razões que a própria razão desconhece: pouco mais de um ano depois de afirmar que o país merecia um “chute no traseiro”, o secretário-geral da Fifa, o francês Jérome Valcke, esteve na Câmara Municipal de São Paulo para receber o título de cidadão paulistano. A honraria foi concedida ao chefe dele, o suíço Joseph Blatter, a pedido do vereador Paulo Reis (PT), que afirmou se tratar de um “simbolismo” da cidade por tudo o que vem sendo feito em torno da organização da Copa do Mundo de 2014.

A sessão solene fez de tudo para poupar Valcke de críticas, mas ele chegou a tempo de ouvir as duas últimas reclamações feitas pela população presente à audiência pública organizada antes do evento. “A Copa é para todos. Não é para algumas pessoas”, disse, acrescentando que aquilo que a entidade privada exige do Brasil é o mesmo que cobrou da África do Sul, sede do Mundial de 2010. “Vi que me acolheram com certo número de ruídos simpáticos. Sei que sou o cara mau da Fifa, aquele que cobra, que exige, que diz coisas duras, que às vezes não deveria dizer.”

Embora tenha se comprometido a responder questões emitidas pelos “ruídos simpáticos”, o “homem mau” foi poupado pelos organizadores da sessão, que consideraram não haver tempo para tal. Ao longo da tarde haviam passado pelo microfone pessoas que resumiram os problemas pelos quais o megaevento provoca arrepios em setores da população: remoções de famílias para obras e proibição da venda de comércio ambulante nos arredores dos estádios.

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“Está aqui esta mesa gigantesca, com muita fala, muita enrolação, pouca fala da sociedade”, afirmou Juliana Machado, do Comitê Popular da Copa. A entidade calcula em 200 mil o número de pessoas que serão deslocadas pelas obras voltadas ao evento, sejam estádios, sejam trabalhos de infraestrutura. “Não consideramos legítima esta audiência pública.”

Enquanto Valcke entrava na sala, um morador da Lapa, na zona oeste, indagava: “A Copa é para quem? Para quem é o futebol nesta cidade?”. A queixa é de que falta transparência por parte de todos os órgãos públicos envolvidos sobre quais serão as obras e quais os efeitos de cada uma delas. “Quando chegar a Copa vou me oferecer para ser guia turístico e mostrar onde estão os favelados, escondidos, maltratados”, disse a vendedora ambulante Maria Elsa de Fátima Martins, que se queixou do tratamento dispensado a camelôs – na África do Sul houve não apenas proibição deste tipo de comércio como caça à venda de artigos que reproduziam marcas registradas da Fifa e de seus parceiros, como camisetas, bolas e outros souvenires.

Nada que abalasse Valcke. Durante as duas horas em que esteve no local, em apenas um momento o secretário-geral da Fifa corou frente a uma fala: foi quando o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), José Maria Marin, comemorou a vitória que a seleção obteve na véspera contra a França. Sobre os efeitos negativos da Copa, o cartola europeu garantiu que trabalha para garantir ingressos “o menos caro possível” para que a população possa assistir às partidas do Mundial, e assegurou que estava ali com “prazer” em nome de Blatter, que muito tem “se emocionado” com o trabalho desenvolvido à frente do futebol. “Não tenho nada a ocultar. A Fifa não tem nada a ocultar. Pode-se dizer o que quiser, mas faz dois anos a Fifa começou um processo de reformas.”

Após sucessivas acusações de lavagem de dinheiro envolvendo a entidade máxima e as confederações regionais, foi aprovado um plano de depuração de denúncias de corrupção, mas resultados efetivos não foram alcançados – ou, pelo menos, não foram tornados públicos.

Ao defender Blatter, Valcke recordou que o suíço entrou na entidade quando era pequena, tinha apenas 12 funcionários, contra 400 atualmente. Nestas quatro décadas, aumentou também a lucratividade da empresa – segundo a consultoria BDO, só a Copa do ano que vem dará R$ 10 bilhões à entidade. Em torno desta questão, o deputado federal Vicente Cândido (PT-SP), que foi relator da Lei Geral da Copa na Câmara, afirmou que a “parceira” do Brasil precisa ser respeitada. “Como é que a Fifa vai levar dinheiro? O lucro da Fifa vai para as confederações, não fica com a Fifa. E no caso do Brasil, com permissão da Fifa, uma parte desse lucro estará para a população.”

Por coincidência, o título foi destinado a Blatter na semana em que ele completa 15 anos à frente da entidade máxima do futebol. Ao suceder João Havelange, o cartola deu sequência à construção de um império pouco supervisionado que congrega 209 associações nacionais e que, nos dizeres do jornalista inglês Andrew Jennings, funciona nos moldes das antigas máfias de Nova York: cada uma das máfias regionais, no caso as confederações continentais, administra os crimes da maneira que deseja, mas não pode deixar de prestar informações ao capo – nesta configuração, Blatter.

Também comandante de uma entidade mergulhada na névoa das suspeitas, o presidente da CBF, José Maria Marin, afirmou que a concessão do título a Blatter comprova que a Câmara é a “caixa de ressonância das aspirações da população de São Paulo”. O cartola esteve à vontade na sala que criou quando presidente da Casa, em 1969, vereador pelo Partido de Representação Popular (PRP), do integralista Plínio Salgado. “Mais uma vez, uma demonstração de grande maturidade da Câmara. Reis foi de uma iniciativa extraordinária”, definiu – mais tarde, o vereador petista retribuiu chamando o dirigente de “colega” e “professor”.

De dedo em riste, orador das antigas, Marin aproveitou para voltar a evocar sentimentos de patriotismo, como fez em 1975, quando, na condição de deputado estadual, cobrou a tomada de medidas contra o então diretor de Jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog, um dos “elementos subversivos” que traziam “intranquilidade” a São Paulo. Dias depois, Herzog foi preso e morto sob tortura. Agora, as causas nacionalistas que movem Marin são outras, e ele diz desejar que o país se recupere da “tragédia” de 1950, quando a seleção foi derrotada no Maracanã, pelo Uruguai, na decisão do Mundial.

“O Brasil tem oportunidade agora de transformar tristeza em alegria. Para isso, precisamos da união de todos os brasileiros”, disse. Em seguida, questionado pelos jornalistas sobre as famílias afetadas pelas remoções, teve outro tom: “Nosso papel é referente à Seleção. Obras não cabem a nós. Apenas acompanhar. Só fazemos acompanhamento, mas não fazemos concorrência nem tomada de preço. Nossa preocupação é com a Seleção”.

O autor da proposta de homenagem foi outro que afirmou que a alegria do futebol e a tristeza das pessoas afetadas pelo Mundial são “coisas distintas”. “O Itaquerão é uma obra que vai beneficiar uma maioria”, argumentou o vereador Reis. “A Copa poderia ir para outro país, mas está vindo para o Brasil. Temos beneficiários deste processo. Agora, dentro deste processo todo tem de fazer obras. Vai desapropriar, mas vai pagar o valor justo.”

Reis, vereador de primeiro mandato, espera na próxima semana receber Blatter em pessoa quando o cartola chegar ao Brasil para a abertura da Copa das Confederações, que será realizada entre os próximos dias 15 e 30 no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, Salvador, Recife e Brasília. Já o novo cidadão paulistano não é dirigente de primeira viagem: iniciou a carreira de administração como chefe de relações públicas de um departamento de turismo de uma região da Suíça. Menos de dez anos depois, no começo da década de 1970, foi entender o funcionamento dos Jogos Olímpicos, e já em 1975 ajudava Havelange como diretor dos Programas de Desenvolvimento Técnico da Fifa. Nos 20 anos seguintes, subiu a secretário-geral da entidade e diretor-executivo, até suceder o brasileiro no comando da entidade.

De lá para cá se notabilizou por fazer da Copa do Mundo um negócio altamente lucrativo para a Fifa e seus parceiros privados, e razoavelmente contestado pelas populações que foram “escolhidas” para sediar o evento. O torneio tem significado, a cada edição de forma mais clara, um ambiente confortável para que a entidade máxima do futebol tenha durante alguns dias licença privada em plenos territórios públicos para levar a exponentes altos seus lucros, garantidos por receitas de vendas de ingressos, de pacotes turísticos, de direitos de transmissão das partidas e de vendas (exclusivas) de produtos.

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