Deputados querem reverter domínio conservador na Comissão de Direitos Humanos

Ouvidos pela RBA, Jean Wyllys, Erika Kokay e Nilmário Miranda diagnosticam disputa ideológica dos direitos humanos e prometem continuar briga em outros fóruns

‘Posse do pastor é um escárnio para os direitos humanos’, defende a deputada petista Erika Kokay (Foto: Agência Câmara)

São Paulo – A posse do pastor Marco Feliciano (PSC-SP) como presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados fala muito sobre as disputas políticas e os acordos partidários em curso no Brasil com vistas às eleições presidenciais de 2014. Essa é a tese defendida pelo parlamentar Jean Wyllys (PSOL-RJ) em entrevista à Rede Brasil Atual. Muito identificado com grupos homossexuais, o deputado afirma ainda que os recentes acontecimentos envolvendo a comissão também dizem respeito a uma “disputa ideológica” em torno dos direitos humanos no país.

“O que acabamos de assistir na Comissão de Direitos Humanos e Minorias está conectado com o jogo político mais amplo e com a disputa de poder envolvendo PT, PSDB e PMDB. É uma pena que parte da imprensa tente folclorizar a disputa pela comissão. Tenta-se dar a aparência de que se trata de uma briga entre mim e Marco Feliciano, dizendo que me oponho à sua indicação porque ele é cristão”, explica Jean Wyllys. “Mas meu problema não tem a ver com o fato de ele ser pastor evangélico. É uma questão política: existe uma disputa entre fundamentalistas religiosos e deputados progressistas, que dialogam com os movimentos sociais de esquerda.”

De acordo com o parlamentar do PSOL, existe uma “direita cristã” que está aliada com os setores mais conservadores da sociedade – ruralistas, por exemplo – para combater no Congresso Nacional uma perspectiva dos direitos humanos que luta pela inclusão das minorias. Prova disso seriam os largos sorrisos exibidos pelo deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) após a eleição de Marco Feliciano como presidente da comissão. Militar, Bolsonaro é conhecido por suas defesas da ditadura e seus ataques contra negros e homossexuais. Jean Wyllys afirma que, dos 18 membros titulares da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, 11 são pastores. Apenas o PSC possui seis membros, graças à renúncia de parlamentares de PMDB e PSDB.

Essa nova configuração deve conferir ao grupo uma noção de direitos humanos radicalmente diferente da que existia até então. “A força da comissão não está na comissão em si, mas no trabalho que desenvolvemos”, explica o deputado do PSOL. “Queremos discutir temas como os grupos de extermínio nas periferias, tortura nas prisões, violência contra mulheres e homossexuais, legalização do aborto, a regulamentação das drogas leves para combater o narcotráfico, a regulamentação da prostituição para garantir o direito das prostitutas e combater o tráfico de mulheres.”

Jean Wyllys acredita que essas pautas não terão cabida na comissão presidida por Marco Feliciano. “Eles têm uma perspectiva assistencialista e caritativa dos direitos humanos, que é como as igrejas trabalham em relação com a pobreza. Essa luta exclui a luta das minorias estigmatizadas, como os homossexuais, torturados pela ditadura e populações tradicionais. É a mesma ideia de distribuir sopão na praça. A caridade é importante, mas não resolve o problema nem garante os direitos das minorias. Não quer mexer nas estruturas da sociedade que perpetuam a desigualdade e a discriminação”, compara. “A gente não pode aceitar essa situação. Por isso estamos reagindo, para evitar que a noção transformadora dos direitos humanos se percam aqui dentro.”

Surrealpolitik

O deputado do PSOL aponta o dedo contra o governo por esse “ataque” aos direitos humanos dentro do parlamento, e sinaliza que o início prematuro das movimentações eleitorais com vistas a 2014 é a melhor maneira de explicar as razões que levaram fundamentalistas religiosos e conservadores ao comando da comissão. Para Jean Wyllys, o ressurgimento de Marina Silva mexeu tanto com Dilma Rousseff (PT) como com Aécio Neves (PSDB), os dois favoritos para disputar o Planalto daqui a um ano e meio.

'Passamos da realpolitk para a surrealpolitik com o que aconteceu na comissão', diz Jean Wyllys

“Por ser evangélica, Marina Silva dialoga com essa população que ainda não é maioria no país, mas cresce de maneira assombrosa. Isso provocou temor nos dois candidatos, mas principalmente em Dilma Rousseff. Então o PT tratou de fazer acordos com a bancada evangélica na Câmara para garantir o apoio dos pastores para 2014”, analisa. “Assim nasce a governabilidade, através dessas concessões.”

Durante a divisão da presidência das comissões da Câmara, em 27 de fevereiro, o PT abriu mão da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, que já comandou em 12 ocasiões e que comandava até a última quinta-feira (7) com o deputado maranhense Domingos Dutra. Como tinha direito a dirigir apenas três colegiados, o partido teve outras prioridades – e foi obrigado a ceder os direitos humanos ao PSC. “É a governabilidade”, define Jean Wyllys, criando um novo termo para o que acaba de assistir. “Pulamos da realpolitik para a surrealpolitik. Quando você rifa o direito das minorias e contraria descaradamente o princípio da democracia, que deveria protegê-las, você abandona a realpolitik para fazer surrealpolitik.”

Recurso

Tudo isso fez com que alguns deputados mais identificados aos direitos humanos – alguns deles até então membros da comissão – decidissem tomar algumas atitudes. A primeira delas será contestar a eleição do pastor Marco Feliciano. Em entrevista à Rede Brasil Atual, a deputada Erika Kokay (PT-DF) argumenta que a escolha esteve repleta de irregularidades. A começar pela indicação do religioso, que, segundo a parlamentar, afronta as funções que são próprias da comissão. “Depois, não existiu nenhum ato formal exigindo que a votação fosse realizada a portas fechadas, como aconteceu, evitando a entrada de representantes da sociedade.”

“Estamos verificando a possibilidade de mover recursos para invalidar o atentado que foi feito ao Regimento da Câmara, à democracia, à Constituição e aos direitos humanos com a eleição do pastor”, explica, lembrando que, com a cumplicidade do presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), sequer foi dado aos parlamentares tempo hábil para ouvir os movimentos sociais e construir consensos dentro da comissão. “Optaram por calar a oposição pela força. Por isso é que saímos da sala durante a votação. Se tivéssemos participado, estaríamos validando todas as irregularidades.”

Na próxima terça-feira (12), os deputados que “perderam” a disputa política dentro da comissão vão se reunir para estudar a criação de uma Frente Parlamentar dos Direitos Humanos, que não pretende ter o caráter de “comissão paralela”, como se disse, mas que será formada para que a Câmara não deixe de discutir questões que não deverão ter espaço no grupo presidido pelo pastor Marco Feliciano. “Precisamos garantir na Casa instrumentos legítimos e coadunados com os preceitos fundantes dos direitos humanos para dialogar com a sociedade e os organismos internacionais, e levar adiante a luta das minorias.”

Marco Feliciano nega acusações de racista e homofóbico e pretende presidir uma 'comissão para todos' (foto: Agência Câmara)

Erika Kokay sublinha que não são apenas os direitos dos homossexuais que estão ameaçados com a gestão dos conservadores na comissão. De acordo com a deputada, as discriminações contra um grupo específico nunca conseguem ficar represadas, e o preconceito que hoje em dia aflora contra os grupos GLBT amanhã se estenderá a outras minorias. “Se você não entende os direitos dos gays e lésbicas, por exemplo, terá dificuldades para entender os direitos de todos aqueles que não estão dentro das noções dominantes. A homofobia rompe a noção de respeito ao outro, a ideia de que quem é faz diferentes opções sexuais ou religiosas tem os mesmos direitos”, afirma. “Por isso, os homofóbicos tendem a ser sexistas, racistas. Existe uma aliança entre fundamentalistas e ruralistas, por exemplo, contra comunidades indígenas ou quilombolas.”

Impasse

Apesar de terem um discurso afinado contra o domínio conservador na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, os deputados procurados pela Rede Brasil Atual divergem em relação à sua permanência no colegiado dirigido pelo pastor Marco Feliciano. Caso não seja possível retirá-lo da presidência, Jean Wyllys afirma que renunciará a sua cadeira na comissão. “Vou tocar minhas pautas em outros espaços, porque não dá pra ficar dessa maneira”, justifica. “Qualquer discussão que quisermos fazer, seremos barrados. Será uma derrota constante, e as reuniões se transformarão num circo público para ampliar o discurso conservador contrário às minorias. É uma estratégia muito bem pensada. Nenhuma comissão está tão dominada quanto a de direitos humanos.”

Por outro lado, Erika Kokay manifesta vontade de seguir atuando no grupo. “Pessoalmente, defendo que a gente fique na comissão mesmo com todas as adversidades, mas quero discutir com os colegas para definir uma posição conjunta.” O deputado Nilmário Miranda (PT-MG) também advoga pela permanência dos parlamentares principalmente para evitar a “desmoralização” do colegiado. Primeiro parlamentar a presidir a comissão, em 1995, e primeiro ministro da Secretaria de Direitos Humanos do governo Lula, Nilmário considerou “um episódio vergonhoso” o processo que resultou na eleição do deputado pastor Marco Feliciano – cujas declarações racistas e homofóbicas, diz, não podem ser consideradas simples opiniões. “São posições traduzidas em prática.”

Também ex-ministro de Direitos Humanos e colunista da Rádio Brasil Atual, Paulo Vannuchi afirma que a ofensiva de parlamentares contrários ao debate histórico promovido dentro da comissão pode resultar na perda de uma sequência de trabalho relevante desenvolvido ao longo das duas últimas décadas. “É lamentável que tenha havido uma falta de interesse de partidos como PT, PCdoB e PSD nessa comissão”, anota. “A verdade é que nunca se permitiu um desastre como aconteceu agora. Espero que haja negociação e que a decisão possa ser revertida.”