Idealizador do Ficha Limpa pede ‘fim de brechas’ e financiamento público de campanhas

Chico Whitaker entende que novas mudanças vão alterar a maneira como o brasileiro enxerga a corrupção e avalia que credibilidade do STF depende do julgamento de casos além do mensalão

‘O importante é que um número enorme de pessoas efetivamente foram afastadas. É questão agora de continuar insistindo’ (Foto: Flickr Skasuga)

São Paulo – Um dos idealizadores do projeto que resultou na Lei da Ficha Limpa, Chico Whitaker entende que a iniciativa já surtiu um efeito positivo na disputa eleitoral deste ano ao barrar candidatos e colaborar na promoção de uma cultura intolerante à corrupção. Ainda assim, o coordenador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral entende que é preciso tapar brechas e avançar na aprovação de alguns dos itens da reforma política, como o financiamento público de campanha e o limite ao número de mandatos no Legislativo.

Vereador pelo PT e líder do governo na Câmara Municipal durante a gestão de Luiza Erundina (1989-93), Whitaker deixou o partido em 2006. Hoje, lamenta que a sigla, ou parte dela, tenha cedido à mesma lógica daquelas que a antecederam, e entende que todos os que passaram pelo poder federal têm algum grau de culpa pela construção de um sistema distorcido de relações entre Executivo e Legislativo. “Não se pode agora crucificar somente um partido. Se for pra crucificar, tem de crucificar vários, todos, aliás, todos que tomaram em algum momento o poder. Todos têm culpa no cartório”, diz, ao comentar o julgamento da Ação Penal 470, o chamado mensalão. Para o ativista, que é também um dos criadores do Fórum Social Mundial, o Supremo Tribunal Federal (STF) terá credibilidade se julgar também os episódios envolvendo os outros partidos – o que, lamenta, não deve ocorrer tão facilmente.

Confira a seguir trechos da entrevista concedida na última sexta-feira (26) à RBA.

A Lei da Ficha Limpa teve uma repercussão grande, mas alguns fichas-suja acabaram colocando filhos e esposas nas eleições. Quais são os próximos desafios pra garantir fichas limpas nos cargos públicos?

É um processo. Nada sai perfeito, digamos. Algumas brechas precisam ser corrigidas. Por exemplo, esse negócio de por filho, mulher, etc. não é possível pra candidato ao Legislativo, enquanto é possível pra Executivo. Legislativo tem uma certa limitação para isso aí – não sei exatamente qual é a regra. Inclusive, no Executivo, você pode colocar da noite para o dia. Quer dizer, no último dia ele pode mudar o nome. Isso precisa ser corrigido. São coisas como outras que desfilam por aí afora que vão ter de ser objeto de mais uma reflexão.Tudo isso aí temos de ver. 

O importante é que um número enorme de pessoas efetivamente foram afastadas. É questão agora de continuar insistindo. Inclusive, o que está havendo, que é muito interessante, é que o conceito de ficha limpa está penetrando em todos os setores da sociedade, não somente na área da eleição pra cargos do Executivo e do Legislativo, mas também pra cargos de nomeação, em toda a máquina de governo. Tem até um projeto o Senado fazendo uma generalização porque muitas prefeituras e muitos estados estão passando leis nesse sentido, mas é possível fazer uma generalizada para todo Brasil. Então, tudo isso vai criando um acúmulo, que vai tornando mais difícil pessoas que não tenham uma vida pregressa condizente com a função que eles querem exercer sejam realmente afastadas.

Ainda nesse sentido, essa inclusão de fichas limpas pra cargo de nomeações, junto com esse tipo de medidas. Qual é a agenda de lutas de combate à corrupção pras próxima etapa?

Tem um ponto que está saindo cada vez mais nitidamente claro, que é o problema do financiamento das campanhas. Do ponto de vista da corrupção, um problema sério, à medida em que há uma liberdade total de financiamento, as empresas que depois querem gozar dos favores são as que mais sobem em cima. E vão mais longe nisso, porque, por exemplo, as grandes empreiteiras de obras públicas que dependem de decisões do governo são as que, na prática, alimentam os caixas das campanhas, com o troco que elas querem receber. Esse troco tem dois tipos de coesão: uma são medidas a favor de quem financiou; outra é a famosa “porcentagenzinha” que vai para o bolso dos intermediários ou dos próprios candidatos. Tudo isso é um procedimento que está vinculado à questão das altas somas necessárias para financiar campanha. 

Tem outras questões que estão amadurecendo. Na reforma política de forma tem uma tese que está crescendo, que é de delimitar o número de mandatos no Legislativo. Tem também muita vinculação com corrupção porque o candidato ao Legislativo que quer permanecer lá em geral tem essa doença, uma síndrome da reeleição – o sujeito entra no dia seguinte e a primeira coisa que ele pensa é como é que vai se reeleger. Se  ele estiver limitado a só uma vez, já não pensa tanto nisso, embora sempre tenha a escapatória de botar filho, mulher e etc. e continuar gozando dos privilégios. E tudo isso vai somando. A corrupção está ligada a toda uma cultura de ganhar dinheiro e se aproveitar. E isso vai mais fundo na questão. É o próprio sistema que nós vivemos. O capitalismo é um sistema em que o objetivo da atividade das pessoas e das empresas é ganhar dinheiro. As empresas que não ganharem dinheiro vão pro brejo, as pessoas que não ganharem dinheiro não melhoram na vida, então todo o resto é pretexto pra ganhar dinheiro. 

De que maneira esse processo as discussões realizadas nas conferências organizadas pelos governos Lula e Dilma possibilitaram uma reflexão mais aprofundada?

Tudo isso faz parte de um conjunto de coisas. Cada uma dessas medidas, providências, conferências vão aumentando o número dos que tomam consciência de que é preciso agir, de que é possível agir. Tempos atrás,  não se podia nem cogitar ter essas coisas, principalmente porque as pessoas achavam que não adianta mexer. O grande salto que a gente vai dar nisso é da consciência de que é possível e que se pode mudar. 

A própria Ficha Limpa, um dos grande efeitos dela objetivamente foi de perceber que uma iniciativa popular de lei pode ser aprovada e pode mudar muita coisa. O que significa que se os cidadãos assumirem alguma iniciativa desse tipo, ela pode ser feita. Quando fizemos uma primeira iniciativa em torno da corrupção eleitoral, era esse negócio de compras de voto. Compra de votos é uma das maiores mazelas da nossa democracia, do mundo. Na medida em que você tem mais pobreza, mais ignorância política você tem e mais tem possibilidades de atender à necessidade das pessoas através de favores que lhe darão seu voto, mais possibilidades você tem de eleger os piores crápulas.

Quando nós lançamos, 15 anos atrás, a lei contra compra de votos, também ninguém acreditava que uma lei dessa pudesse ser aprovada. Na questão da compra de votos, em dez anos de aplicação da lei, em cinco eleições seguidas, mais de mil candidatos perderam seu mandato de vereador, prefeito, deputado, até senador e governador. É isso, mais de mil. Esses, por exemplo, já foram eliminados pela lei da Ficha Limpa. 

Também existe essa quantidade de recursos que permite que o sujeito vá empurrando a condenação dele eternamente. Não dá para mudar as coisas em uma tacada só, de cima para baixo, tomando o poder e impondo novas regras. Como isso só pode mudar a partir de uma mudança cultural na sociedade, é extremamente lento. Nesse sentido tem uma coisa que é ainda mais difícil, que são as campanhas eleitorais que nós assistimos agora. O que está acontecendo no Brasil cada vez mais é que quem manda na campanha são os marqueteiros, que não têm nada a ver com proposta política. O que eles querem é eleger e, quanto mais difícil o candidato, melhor eles serão pagos. Esses marqueteiros transformam candidatos em sabonetes, que podem prometer o que eles quiserem. O importante é a maneira como eles prometem. É a chamada propaganda enganosa a toda! O Brasil está exportando essa tecnologia. De repente a gente fica sabendo que em um país ou outro, marqueteiros brasileiros estão fazendo a campanha. É uma coisa que nós absorvemos um pouco das campanhas eleitorais dos Estados Unidos e é algo que precisa ser superado um dia. 

O senhor acredita que a forma como vem sendo conduzido o julgamento do mensalão pelo Supremo está realmente construindo um novo país, livre de corrupção, como diz parte da mídia tradicional?

Há, naturalmente, um exagero na maneira de apresentar as coisas. Principalmente pelos partidos de oposição ao PT, que querem aproveitar para acabar com o PT. Aliás, o grande erro do PT foi ter se deixado prender por essa armadilha. E a armadilha é a relação Executivo-Legislativo, que é extremamente distorcida. No Brasil, como objetivamente assim deve ser, o Executivo não deve mexer uma palha sem autorização legislativa, então ele tem de ter maioria para poder governar, a chamada governabilidade. 

Isso que aconteceu a nível federal, esses esquemas armados a nível federal, isso acontecia há muito tempo. Temos a velha história de que Fernando Henrique foi reeleito porque compraram os votos que mudaram a Constituição. E tem casos anteriores. E isso no nível das prefeituras é absolutamente trágico, tanto que a grande jogada para você ser rico é virar vereador. 

Essa distorção está começando a aparecer nesse julgamento desse mensalão, mas não pode parar aí. O Supremo não pode parar nesse caso, que pegou o pessoal do PT e o esquema que foi montado por esse governo. Tem de pegar, pelo menos, o caso imediatamente anterior, que foi com os mesmos personagens, o Marcos Valério, que foi quem começou isso lá em Minas, com o Eduardo Azeredo. Para ter credibilidade, o Supremo tem de chegar até lá. 

Não sei se vai chegar porque não sei se tem denúncia do Ministério Público sobre o caso de Azeredo. Não se pode agora crucificar somente um partido. Se for pra crucificar, tem de crucificar vários, todos, aliás, todos que tomaram em algum momento o poder. Todos têm culpa no cartório.

A gente nota que esse discurso da corrupção tem bastante infiltração em alguns setores.

Em geral, em setores de classe média, que tendem a se achar mais puros, que não caem nessa e etc. Mas não são só eles, porque qualquer pessoa pode ficar indignada pelo fato de que dinheiro público  é dinheiro público, não está aí para ser apropriado pelo primeiro que chega, o mais esperto. Se é dinheiro público, é dinheiro nosso. Nós, que fornecemos essas caixas aí com nossos impostos, que suprimos essas caixas… Esses setores sociais que mais se mobilizam, muitas vezes, são muito partidarizados, então já entra atrás disso interesse partidário. Mas, de uma maneira, somando, somando, somando, vai acabando, acabando, e dando uma mistura final boa. Vai melhorando o nível. 

A maneira como é conduzida a cobertura jornalística do mensalão contribui para a politização da sociedade ou para afastá-la da política?

Contribui. Não há dúvida. Implica em se corrigir a pontaria, em se falar em denunciar as distorções, em não se ter medo e falar tudo bem, vamos lá, não é só o PT que fez isso aí. Em primeiro lugar. Em segundo lugar, já houve julgamentos também importantes, como o do Collor, por exemplo. Não é assim. No Collor, caiu o presidente da República. Não foi julgamento do STF, mas das instituições políticas. O próprio STF absolveu o Collor.

Agora, o que faz o mensalão ser magnificado é o fato de ter sido originado no PT, cujo programa previa a luta contra isso. Essa incoerência do partido, que não é do partido inteiro, mas de setores do partido, é que foi o trágico da coisa. E isso fez muita gente dizer é tudo a mesma coisa, é tudo igual. Aliás, isso se deu mesmo. O PT se transformou num partido como os outros, tenha ou não tenha setores dentro dele que são contrários a isso, ele se transformou num partido como todos. Isso tira de muita gente a esperança de que possa melhorar. Isso diminui o avanço, e a rapidez do avanço. Se é que pudesse ter coisas mais claras, teria mais gente entendendo a coisa.

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