A década perdida de José Serra

Da derrota para Lula em 2002 ao fracasso em São Paulo, de galho em galho o tucano acumulou desafetos dentro e fora do PSDB e tornou-se símbolo de um estilo desgastado de fazer política

O passar dos anos ampliou a rejeição de Serra. Ao contrario do que disse FHC, ele não expressou amor (Foto: Adriana Spaca/Brazil Photo Press/Folhapress)

São Paulo – A derrota do candidato do PSDB à prefeitura de São Paulo, José Serra, é o fecho de uma década na qual o tucano se transformou em sinônimo de rejeição e em símbolo de uma conduta incapaz de arejar o debate político e as ideias surgidas da sociedade. Outrora associado por parte da mídia tradicional à boa gestão, Serra encerra o ano político com perspectiva estreita dentro do próprio partido, no qual acumulou tantos desafetos quanto fora dele. Aos 70 anos, com duas derrotas pesadas em sequência, o tucano precisará fazer o que tem demonstrado dificuldade em realizar caso queira ressurgir politicamente: reinventar-se. 

Para o cientista político Humberto Dantas, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), o PSDB ganhou um problema ao não apostar na renovação e, Serra, ao se lançar a uma disputa tão complicada. “A questão é que não existe espaço para Serra dentro do PSDB. Salvo qualquer problema, de ordem muito expressiva, nada indica que Geraldo Alckmin não será candidato à reeleição em 2014. A lógica de Serra concorrer a um eventual governo do estado faria sentido apenas em 2018. E não pode, no caso, passar por uma campanha em 2016 vitoriosa.”

A década perdida do ex-governador teve início em 2002, quando perdeu a disputa ao Palácio do Planalto para o então eterno candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Os anos seguintes, com a boa avaliação do governo petista, de um lado, e a obsessão do tucano por Brasília, acabaram por selar a sorte do tucano, derrotado em 2010 na corrida pela Presidência da República após mais um mandato inconcluso. Serra renunciou ao Palácio dos Bandeirantes, para onde havia migrado depois de 15 meses de mandato na prefeitura da capital. As decisões, explicadas por ele como estratégicas para derrotar o PT, converteram-se em herança maldita que arrastou no pleito encerrado este fim de semana. Ironicamente, uma das principais promessas de Serra na disputa foi a de que cumpriria o mandato integralmente, “quatro anos, todos os dias”, uma proposta pequena para o tamanho da cidade e de seus problemas.

Quando decidiu se candidatar, barrando o processo de prévias que poderia levar o PSDB paulistano a uma renovação, Serra já poderia pressagiar a derrota. Conhecido por 100% do eleitorado, tinha uma alta taxa de rejeição, estava conectado ao prefeito Gilberto Kassab (PSD), de má reputação, e trazia consigo a marca do fracasso em 2010. As prévias partidárias, realizadas após um processo turbulento no qual Serra ingressou de última hora, depois do prazo de inscrições, já foram um sinal. O ex-governador teve 52,1% dos votos, uma margem muito apertada para alguém com seu passado em um confronto com candidatos de menor expressão.

Em entrevista à RBA em maio, o diretor do Instituto Vox Populi, Marcos Coimbra, afirmava que não havia coelho na cartola para o tucano. “O fato é que Serra está começando a candidatura a prefeito nas piores condições da vida dele. Ele nunca teve esse conjunto de elementos tão desfavoráveis, com um conhecimento tão grande, uma rejeição tão alta e uma intenção de votos tão baixa.”

Pouco apareceram na campanha os impactos do livro A Privataria Tucana, lançado no final do ano passado. O trabalho do jornalista Amaury Ribeiro Jr. esteve longe de ser uma estrela nos debates políticos, mas antes disso se transformou em uma das obras mais vendidas de não ficção ao revelar os laços de parentes e sócios de Serra com contas abertas em paraísos fiscais para desviar o dinheiro ganho com o processo de privatização de empresas durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), do qual foi ministro do Planejamento – e mentor do Plano Nacional de Desestatização – e da Saúde.

Carregando na mala o trabalho à frente da Saúde e a baixa aprovação de FHC, Serra não chegou ao Planalto na primeira tentativa. A passagem do tom ameno na derrota em 2002 para a beligerância em 2010, quando sofreu o segundo revés, desta vez para Dilma Rousseff, é resultado emblemático da mágoa acumulada ao longo da vida política – e reflete também a transformação de tom da oposição ao governo federal. “Ao vencedor desejo boa sorte na condução dos destinos do Brasil”, disse em 27 de outubro de 2002 a Lula. Oito anos depois, a escolha das palavras já era outra: “E para os que nos imaginam derrotados, quero dizer: ‘nós apenas estamos começando uma luta de verdade’. Estamos no começo dessa luta. Nós vamos dar a nossa contribuição ao país em defesa da pátria, da liberdade, da democracia, do direito que todos têm de falar de serem ouvidos.” 

O papelzinho do início do fim

Presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) na década de 1960, morador da Mooca, um antigo reduto italiano paulistano, engenheiro formado pela Escola Politécnica da USP, secretário de Planejamento em São Paulo, ministro da Saúde de FHC: nenhuma das marcas mais queridas a Serra sobreviveu à memória do eleitorado neste começo da década de 2010.

A alta rejeição medida pelas pesquisas, agora confirmada pelas urnas, transformou-se na demonstração concreta de uma série de questões antes soltas no ar. As marcas da campanha acirrada contra Dilma, a saída prematura da prefeitura em 2006, a gestão estadual sem grandes marcas a destacar, a associação a Kassab, tudo se somou a uma imagem desgastada que atingiu um patamar comparável a Paulo Maluf.

Não por acaso, Serra teve de investir boa parte do tempo tentando reverter a rejeição. Como mostrou a RBA, o rosto e o nome do candidato desapareceram do material de campanha de vereadores da coligação do tucano. No próprio material do candidato, em muitos momentos houve clara tentativa de diminuir a presença dele e, mais que nada, de Gilberto Kassab. Como se balançar entre uma cidade que pede mudança e uma candidatura que precisa defender a continuidade?

“A prefeitura fez coisas boas que nós vamos manter e acelerar, e aquilo que estiver mais problemático, nós vamos enfrentar. Trata-se de uma metodologia”, dizia o político em fevereiro, ao definir sua candidatura, novamente evocando a necessidade de conter o PT, questão que voltaria a abordar ao longo da campanha: os petistas poderiam chegar ao Palácio dos Bandeirantes e ele teve de evitar.

Na tentativa de se ancorar a qualquer fator que pudesse reverter o quadro, a campanha tucana tentou resgatar Fernando Henrique Cardoso, escanteado em 2010. “O isolamento em que sua campanha ficou, dadas as dissonâncias internas do PSDB e as dificuldades para fazer alianças políticas, impediu a vitória”, mastigava o ex-presidente em fevereiro, quando, em artigo para o jornal O Estado de S. Paulo, voltava a afirmar que o senador mineiro Aécio Neves seria o candidato natural tucano para a disputa do Planalto em 2014.

Jogando panos quentes sobre as feridas passadas, FHC declarou sete meses mais tarde: “Serra é capaz de expressar amor”, uma tentativa de reverter uma das más qualidades atribuídas ao tucano: a de uma pessoa fria. “O Serra tem uma característica que precisa ser ressaltada: ele se dá bem com as crianças. Pode parecer fora de moda e inapropriado falar disso, mas não é”, insistiria. Depois disso, não seria mais visto ao lado de Serra. 

Outro antigo desafeto teve de ser trazido à baila. O governador Geraldo Alckmin não revidou publicamente aquilo que sofreu em 2008, quando, em papéis invertidos, Serra abandonou Alckmin na corrida pela prefeitura para apoiar Gilberto Kassab (PSD) – o tucano acabaria eliminado já no primeiro turno. Dessa vez, o chefe do Executivo paulista trabalhou para que o desafeto vencesse as prévias tucanas. Difícil é medir o esforço real promovido por Alckmin. No começo de setembro, a candidata a vereadora Myriam Athiê (DEM) criticou os tucanos por “abandonarem o barco”.

Destemperos

Em três semanas de segundo turno, o candidato do PSDB maximizou uma de suas características até há poucos anos guardada nos bastidores: a má relação com a imprensa. Da agressão ao repórter da RBA, na véspera da primeira votação, ao destempero com uma repórter do portal UOL, o tucano expôs várias vezes sua contrariedade com qualquer pergunta que lhe pudesse parecer desafiadora.

Atrás nas pesquisas, o candidato passou a enxergar inimigos onde não havia. “Vai lá para o Haddad. É a pauta dele. Não precisa ter uma assessora a mais para ele. Vai lá direto”, disse à repórter do UOL um dia depois de destratar, ao vivo, o jornalista Kennedy Alencar, da rádio CBN, que questionou sobre o uso de temas morais na campanha. “Eu sei que você tem uma preferência política, mas modere-se, Kennedy, você está na CBN, não pode fazer campanha eleitoral na CBN.”

Temas morais, aliás, novamente foram a tentativa do tucano de encontrar uma âncora de salvação. O julgamento do mensalão foi escalado logo no discurso de agradecimento pela passagem ao segundo turno, e permaneceria em voga nas semanas seguintes, a ponto de ser alvo de lamentação do adversário em um dos debates. “Você tem uma obsessão com o José Dirceu, Serra, talvez pela relação de amizade que você teve com ele durante décadas…pare com essa obsessão”, disse Haddad no primeiro encontro do segundo turno, promovido pela Band. No seguinte, no SBT, o tucano chegou a afirmar que o oponente tinha a intenção de trazer o mensalão à prefeitura de São Paulo. “Teu desrespeito chega às raias da insanidade. Trazer mensalão pra cá? Do que você está falando?”, indignou-se o petista.

Em paralelo, Serra passou a se valer do “kit gay”, como decidiu chamar o material produzido pelo Ministério da Educação para combater a discriminação. “Kennedy, eu sei que você tem candidato e tal, mas modere-se. Você é um jornalista. Tem que ser mais comportado”, disse ao jornalista da CBN, mais uma vez esquivando-se da responsabilidade de trazer temas morais à campanha. “Todas as vezes que eu falei é porque fui perguntado. Depois vem essa tese petista… O PT levantou que em 2010 eu usei problemas dessa tese. Alguns jornalistas, por gosto ou por preguiça de olharem, estudarem, repetem isso. O que aconteceu em 2010? A Dilma deu uma entrevista para o UOL e disse que era a favor do aborto. Mais adiante ela disse que era contra o aborto. A Marina Silva cobrou a Dilma, e eu cobrei a incoerência.”

Mesmo tentando dar à tática moralista algum sentido lógico, ficou difícil para Serra dissociar-se de um tipo de obscurantismo que parecia envelhecido na política. Em pleno século 21, o principal nome do ninho tucano, e alguns operadores anônimos de sua campanha, introduziram no debate eleitoral um método anacrônico. Aos mais antigos, lembrou práticas semelhantes aos da extrema direita oculta por trás do regime militar na primeira campanha eleitorla pós-abertura, em 1982, contra o então recém-rebatizado PMDB. E mais recentemente, os métodos do malufismo no início dos ano 1990. Deu no que deu.

(Arte: Júlia Lima)

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