Gravações no RS revelam ‘novilingua’ de acusados no governo tucano

Termos aparentemente em código exigem explicações variadas da parte dos protagonistas de conversas captadas em investigações da Polícia Federal

Três novas gravações divulgadas na segunda-feira (28), na CPI da Corrupção da Assembléia Legislativa gaúcha, darão mais trabalho a tradutores da “novilingua” dos acusados de corrupção. Expressões como “D+15”, “D+16”, “D+24”, “coisaredo” e “patrazmente” são algumas das pérolas reveladas nas conversas.

No livro “1984”, o escritor inglês George Orwell utilizou o termo “novilingua” para designar o uso de um novo idioma por parte do grupo que detinha poder político absoluto na sociedade descrita na obra. De lá para cá, a expressão já foi utilizada muitas vezes para descrever linguagens muito peculiares de determinados grupos sociais e políticos. Como ocorre agora no Rio Grande do Sul, onde os acusados de integrar uma quadrilha instalada no aparato de Estado desenvolvem inesgotáveis malabarismos semânticos para tentar traduzir o conteúdo de conversas gravadas com autorização judicial nas investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.

Em uma das novas conversas reveladas, de 14 de setembro de 2007, o ex-presidente do Departamento Estadual de Trânsito (Detran), Flavio Vaz Netto, e o ex-diretor da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), Antonio Dorneu Maciel, falam sobre a entrega de “documentos” para o “Barba Vermelha” (que, segundo as investigações, seria Carlos Ubiratan dos Santos, outro ex-presidente do Detran, conhecido como “Bira, o Vermelho”).

Maciel diz a Vaz Netto: “O ‘Carlão’ tá vindo aqui em casa pegar os documentos do ‘barba vermelha’ e aí me perguntou ontem como é que ficou, como é que foi o ‘coisaredo’. Não, ‘tamo providenciando aí e tal’. O ‘pratrazmente’, entende”.

Na segunda conversa, datada de 9 de outubro de 2007, o assunto gira em torno da definição de um calendário de pagamentos e das respectivas parcelas. Mais uma vez,  expressões como d+15 são utilizadas por Dorneu Maciel para identificar parcelas de “algo” que deveria ser entregue a “alguém”. Ao tentarem explicar conversas desse tipo, vários acusados de envolvimento na fraude do Detran, dizem que elas versavam sobre “assuntos de governo”.

Nota onze!

No dia 22 de setembro, o deputado estadual Marco Peixoto (PP) admitiu, em entrevista à rádio Gaúcha, que ele e o deputado federal José Otávio Germano (PP) participaram de uma reunião com a governadora Yeda Crusius (PSDB) no dia 29 de outubro de 2007. Uma das gravações apresentadas na CPI mostra Peixoto fazendo um relato entusiasmado do encontro para Dorneu Maciel “Foi nota onze! Conversamos sobre tudo o que tu possa imaginar”, diz o deputado a Maciel.

Na entrevista, Marco Peixoto disse que a reunião tratou de um “plano para a recuperação do estado” e que, ao dizer “nota onze”, referia-se à melhoria das relações entre a bancada do PP e o governo. A explicação repetiu o padrão de outras empregadas por agentes públicos envolvidos no esquema do Detran.

Conversas totalmente cifradas são transformadas em supostos debates sobre políticas de governo. A referida reunião com a governadora foi tema de uma série de conversas anteriores que envolveram, entre outros, Dorneu Maciel, José Otávio Germano e o então secretário de governo, Delson Martini. Em uma delas, Maciel relata a Germano as instruções que passou para Martini, detalhando o que ele deveria dizer para Yeda.

Maciel relata a Germano: “O que é importante, eu disse, é ela ouvir o Zé Otávio. Ele vai falar sobre tudo com ela, inclusive pontos nevrálgicos que nós achamos que tu deve estar perto para ajudar a solucionar. Tá bem, eu entendi, ele (Delson) respondeu”.

Pareceres jurídicos “em parcelas”

A maioria das gravações divulgadas até aqui refere-se a telefonemas trocados no final de outubro de 2007, tratando da distribuição de propina entre os integrantes do esquema. Nas conversas, segundo as investigações do MPF e da Polícia Federal, a propina é chamada várias vezes de “parecer jurídico” que, em alguns casos, é distribuído “em parcelas”.

Há uma figura praticamente onipresente nas gravações: Antonio Dorneu Maciel, que, à época, era diretor da CEEE. Nas conversas, Maciel trata da distribuição dos “pareceres”, marca horários de entrega e discute conflitos dentro do esquema. Em uma delas, Vaz Netto diz a Maciel: “não existe perfeição, mas estamos perto”. Em outra, Maciel acerta com José Otávio Germano uma “conversa decisiva”, para o dia 29 de outubro de 2007, do deputado federal do PP com a governadora.

O ex-diretor da CEEE também aparece conversando com a assessora direta da governadora, Walna Vilarins Meneses. Maciel adverte Walna para que ela não corte o canal de comunicação entre ele e o governo (“tu não corta comigo”) e cobra dela a nomeação de um afilhado político.

O contexto do contexto

Os acusados de integrar a quadrilha que roubou o Detran repetem outro mantra quando defrontados com os áudios das interceptações telefônicas: segundo eles, são falas retiradas de um contexto mais amplo.

Uma das coisas que mais chama a atenção de quem ouve essas conversas, no entanto, é que os protagonistas – quase todos importantes agentes políticos do governo Yeda Crusius – sempre falam em linguagem cifrada e nunca falam de temas de governo, de políticas públicas ou de debates políticos.

Nas conversas, freqüentemente, há alguém se preparando para entregar algo a alguém. Esse algo é ora um parecer jurídico, ora é uma escritura, ora são fotos, ora documentos. Nenhum dos materiais é especificado. E, quando se tratam de valores, a numerologia é criativa: sete zero, sete um, “dê mais quinze”, “dê mais vinte”.

Quanto mais expressões que aparentam ser códigos, mais espetacular é a versão dos acusados. José Otávio Germano recorre às eleições no Conselho do Grêmio. Luiz Fernando Zachia, a um debate sobre aumento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS). O “Casa Civil”, como é chamado por Antonio Dorneu Maciel, precisará de muita imaginação para enquadrar o diálogo abaixo em um “contexto de governo”:

Dorneu Maciel: O Casa Civil me ligou. Eu disse pra ele, ‘não esquenta, não veio. A hora que o homem me entregar a escritura, eu pessoalmente, tu sabe, vem pra mim, vai pra ti…’ Eu meio que chutei ele assim. Mas esse podemos mandar tomar banho. O outro é que é xarope. Já avisou ele?

Vaz Netto: Não.

Dorneu Maciel: Então avisa, pra ele não ficar nervoso. Segunda, ele vai viajar, tu vai ver quantas vezes ele vai te ligar (risos).

Vaz Netto: Ai, que espetáculo! (risos)

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