Avalanche conservadora

EUA retiram direito a aborto da Constituição. ‘Retrocesso de meio século’

Suprema Corte do país derrubou decisão de 1973 do próprio Judiciário que possibilitava o procedimento. No Brasil, ativistas lamentam “herança de Trump”

National Secular Society/Reprodução
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O direito da pessoa gestante de realizar a interrupção da gravidez até o primeiro trimeste de gravidez era protegido nacionalmente desde 1973

São Paulo – A Suprema Corte dos Estados Unidos, de maioria conservadora, decidiu, nesta sexta-feira (24), derrubar o direito constitucional ao aborto legal no país. A decisão põe fim a quase meio século de proteção constitucional que estabeleceu que o direito ao respeito à vida privada se aplicava também sobre a interrupção voluntária da gravidez. Sem a legislação, caberá a cada estado norte-americano proibir ou autorizar o aborto. 

O direito da pessoa gestante de interromper a gravidez até o primeiro trimestre de gestação era protegido nacionalmente desde 1973. A prerrogativa seguia decisão da própria Suprema Corte sobre o caso conhecido como Roe versus Wade. Há 49 anos, os magistrados derrubaram, por sete votos contra dois, as leis do Texas que criminalizavam o aborto, acolhendo ação movida três anos antes por Norma McCorvey, uma mãe solo grávida pela terceira vez que questionava a constitucionalidade da proibição da prática no estado. 

Hoje, porém, por cinco votos a quatro, a mais alta Corte voltou atrás da decisão, alegando que a decisão no caso Roe versus Wade “foi tomada erroneamente pois a Constituição dos Estados Unidos não faz menção específica ao direito ao aborto”. 

Apelo conservador 

A revisão da lei recebeu os votos dos juízes Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. Os três últimos nomeados pelo ex-presidente Donald Trump. Com eles, votou também Samuel Alito Ele é autor do rascunho, que vazou no início de maio, que adiantava que a interrupção voluntária da gravidez deixaria de ser um direito constitucional no país. Mas se a notícia provocou indignação de políticos democratas e defensores dos direitos reprodutivos das mulheres, por outro lado animou o Partido Republicano e as alas conservadoras e religiosas. 

Os Estados Unidos voltam agora à situação de cada estado ser livre para decidir sobre o aborto, caso de Wyoming, Tennessee e Carolina do Sul, por exemplo, que já anunciaram que devem proibir por completo a prática. Ao todo, atualmente 26 estados são identificados com o campo republicano, a maioria no centro e sul do país. Entretanto, ao menos 11 outros, como Califórnia, Novo México e Michigan também já divulgaram que preparam planos para garantir o direito ao aborto por lei. 

Repercussão no Brasil 

A decisão da Suprema Corte americana foi lamentada por ativistas pelos direitos das mulheres e parlamentares progressistas no Brasil, nNa semana em que veio à tona o caso de uma criança de 11 anos, grávida após ser vítima de estupro e impedida de ter acesso ao aborto previsto em lei. A própria justiça manteve a vítima por mais de 40 dias em um abrigo, longe da família, para que ela não realizasse o procedimento. o que só ocorreu após intervenção do Ministério Público Federal.

Com isso, esta sexta foi destacada como mais um “dia de muita angústia para mulheres, meninas e todas as pessoas nos Estados Unidos”, descreveu a antropóloga, professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UNB) Debora Diniz, ativista histórica pela causa. “Um retrocesso de meio século”, classificou em suas redes sociais.

Ela também lamentou a “herança conservadora de Trump”, destacada por internautas sobre o caso. “É o longo dia seguinte de um governo autoritário. Trump fez maioria na Suprema Corte. Governos autoritários perseguem direitos reprodutivos”, comentou.

“Muito triste a decisão da Suprema Corte dos EUA”, também observou a deputada federal Talíria Petrone (Psol-RJ). “Um grande retrocesso que mostra que a nossa luta é constante”. A parlamentar ainda fez um paralelo do caso com o Brasil, onde o presidente Jair Bolsonaro se silenciou sobre a violência contra a menina de Santa Catarina, mas chamou de “assassinato” o direito à interrupção legal da gravidez. “Que mundos são esses em que isso é tolerável?”, questionou.

Outros riscos

O advogado Thiago Amparo, professor de Direito internacional e direitos humanos da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, chamou atenção para o fato da decisão ser “resultado de décadas de mobilização jurídica conservadora”. De acordo com ele, que estuda a Suprema Corte dos EUA, os impactos da reversão serão “enormes” sobre a saúde das pessoas gestantes. A começar que elas terão de viajar para os estados onde o aborto legal continuará permitido, o que demandará condições financeiras.

Outro risco, de acordo com Amparo, é o de que direitos já conquistados poderão ser reduzidos ou não reconhecidos “se continuar a tendência de maioria reacionária”. “Então o céu (ou o inferno) é o limite. Até casamento LGBT corre risco”, escreveu o advogado. “Devemos parar de tratar os EUA como um país líder de Estado de direito. Hoje a Corte permite supressão de votos de latinos e negros, permite a cooptação de uma jurisprudência reacionária. Teve invasão do legislativo. Corte perde o bonde da história e relevância”, destacou Amparo. 

A decisão também foi comentada pelo ex-presidente Barack Obama como um “ataque às liberdades individuais”. “A Suprema Corte não apenas reverteu cerca de 50 anos de precedentes, mas relegou a decisão mais intensamente pessoal que alguém pode tomar aos caprichos de políticos e ideólogos – atacando as liberdades essenciais de milhões de americanas”, afirmou o democrata.

Redação: Clara Assunção

(*) Com informações de DW, g1 e O Globo


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