talibã no poder

Afeganistão: um joguete nas mãos de superpotências

Para professora da Uerj, as perspectivas para o povo afegão são de disputas internas e guerra civil, famílias desesperadas e repressão

Reproidução/Youtube
Reproidução/Youtube
"Terra arrasada" é a herança do povo afegão, e as mulheres desaparecem de ruas e fotografias

São Paulo – Em pronunciamento na tarde desta terça-feira (31), o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, tentou mais uma vez justificar a retirada da operação militar no Afeganistão depois de 20 anos no país. “Eu assumo a responsabilidade”, disse. No entanto, afirmou discordar de que houvesse alternativa melhor para a saída das tropas americanas do território afegão. “Alguns dizem que deveríamos ter começado a retirada mais cedo e que isso poderia ter sido feito de maneira mais ordenada. Imaginem se tivéssemos começado a retirada em junho-julho trazendo milhares de militares americanos e retirando mais de 120 mil pessoas. Ainda assim teria havido a corrida ao aeroporto e a missão teria sido muito difícil. Outros dizem que deveríamos ter ficado por muitos anos.”

O mandatário lembrou que o acordo entre os Estados Unidos e o Talibã, grupo que assumiu o controle imediato do país após a retirada, foi assinado pelo antecessor, o republicano Donald Trump. Biden afirmou que tinha duas escolhas: respeitar o acordo ou estendê-lo por mais tempo. Segundo ele, porém, já não havia sentido em manter a operação. “Só temos um interesse: garantir que o Afeganistão jamais seja usado de novo para lançar ataques contra nosso território.” Os Estados Unidos gastaram cerca de US$ 2 trilhões com a ocupação e a pressão interna pela saída era forte.

Em 2001, as Torres Gêmeas

Os EUA invadiram o Afeganistão após o atentado contra as Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. O objetivo, então, era aniquilar a Al Qaeda de Osama Bin Laden, que foi morto em 2011. A professora Miriam Gomes Saraiva, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), lembra que a ideia norte-americana não era só perseguir e destruir os terroristas, mas também tirar os talibãs do poder. “Tanto que derrubaram e incentivaram a formação de outros governos.” O grupo governou o Afeganistão entre 1996 e 2001.

Diante da complexidade afegã, um território fragmentado em muitas tribos e grupos, ao entrar no país os Estados Unidos se articularam com lideranças locais buscando apoio de forças contrárias ao Talibã. Até o fim dos anos 1970, o Afeganistão era um país relativamente moderno. “Não tinha a Sharia (sistema jurídico baseado em uma interpretação radicalizada do Corão, o livro sagrado dos muçulmanos). Daí para frente, entrou um governo, digamos, socialista, e os soviéticos enviaram tropas para ‘garantir’ esse governo em 1979”, explica Miriam.

Caos e guerra civil

Se a União Soviética invadiu o país, os EUA passaram a financiar os insurgentes afegãos, chamados mujahidin, que combatiam o “Exército Vermelho”. “Era o governo Jimmy Carter (1977-1981), em tese um pacifista”, diz a professora. “Com Ronald Reagan (1981-1989), essa ação se intensificou.” Depois de dez anos do que se convencionou chamar de Guerra do Afeganistão, os soviéticos foram derrotados e deixaram o país. Instalou-se um período de caos, guerra civil e disputa entre inúmeras tribos e grupos armados.

Os talibãs tomaram o poder e passaram a governar o Afeganistão a partir de 1996. Foram derrubados em 2001. Em fevereiro de 2020, Donald Trump assinou o acordo pelo qual os EUA retirariam as tropas em troca de a Al-Qaeda ser impedida de operar no país. “De 1979 até agora, o Afeganistão tem sido um joguete na mão de potências externas e grupos violentos, como os talibãs. A presença norte-americana estabilizou um pouco, mas foi se tornando muito caro para eles”, diz Miriam Saraiva.

A vez da China e da Rússia de novo?

A analista avalia que as perspectivas, com a retirada definitiva dos Estados Unidos de seu território, são de disputas internas, guerra civil, famílias desesperadas e repressão. “É muito improvável que as mulheres afegãs continuem fazendo universidade, tendo seus empregos. Até os anos 70 era um país, digamos, bastante razoável, não tinha esse ambiente medieval. O futuro não é promissor. É muito triste.” Assim como na Líbia e no Iraque, que também sofreram intervenção norte-americana, a “terra arrasada” é a herança que fica agora para o Afeganistão.

Trump foi “esperto ao assinar o acordo espúrio”, diz a professora da Uerj. “A população afegã tem razão de chamá-los de traidores: ‘você me dá o que eu queria, combater a Al Qaeda, agora eu saio e azar da população’. Biden herdou isso, e uma opinião pública já muito decidida pela retirada das tropas. Mas Biden parece não ter programado corretamente. E pareceu uma falha da inteligência americana não prever que essa retomada do Talibã acontecesse tão rapidamente”, avalia.

Agora, a China e a Rússia têm a intenção de se aproximar do “novo-velho” regime islâmico. “Não dá para confiar no Talibã, mas aparentemente eles estão tentando pelo menos passar a imagem de que não vão fazer um governo tão repressor e violento quanto foi o período anterior. Ao que parece, os chineses apoiariam o talibã desde que a região se estabilizasse, com um governo menos repressor, porque com aquele nível de repressão não existe governo estável.”


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