50 anos depois

Tribunal da França manobra e livra indústrias de agrotóxicos de condenação no caso Agente Laranja

Ao se declarar incompetente para julgar, corte francesa favorece indústrias de agrotóxicos que supriram exército dos EUA de armas químicas que até hoje fazem vítimas no Vietnã

Wikimedia Commons
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Helicóptero dos Estados Unidos despeja combinação de agrotóxicos altamente tóxicos sobre floresta no Vietnã

São Paulo – Um tribunal da França favoreceu indústrias de agrotóxicos ao se declarar incompetente para julgar uma ação na qual eram acusadas de causar diversas danos à saúde de Tran To Nga, uma ativista franco-vietamita de 79 anos. Em decisão anunciada nesta segunda-feira (10), a Justiça de Evry, nos arredores de Paris, declarou não ter competência para julgar a responsabilização da Bayer, dona da Monsanto, a Dow Química e mais uma dezena de fabricantes de herbicidas componentes do Agente Laranja, arma química usada pelos Estados Unidos contra o Vietnã.

O tribunal também se declarou incompetente para julgar ações do governo dos Estados Unidos durante a guerra contra aquele país asiático. Segundo a imprensa local, o argumento foi que “as empresas estavam agindo por ordem do governo dos Estados Unidos, que estava envolvido em um ato soberano”.

Ação contra fabricantes do Agente Laranja atinge poder militar dos EUA

Entre 1962 e 1971, aviões e helicópteros das forças estadunidenses despejaram milhares de toneladas de Agente Laranja sobre florestas e lavouras. O objetivo era localizar e atingir soldados vietnamitas, além de quebrar a produção de alimentos do país.

Agrotóxicos na guerra

A ativista, uma ex-jornalista nascida em 1942 na então Indochina francesa, também acusou os fabricantes de agrotóxicos de causar danos graves a outras pessoas. Desde a guerra, mais de 150.000 crianças nasceram com graves deformidades. E muitos casos continuam sendo registrados mesmo após 50 anos do fim da guerra.

Organizações de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente estimam que quatro milhões de pessoas no Vietnã, Laos e Camboja foram expostas aos 76 milhões de litros de Agente Laranja pulverizados.

Até agora, apenas veteranos militares dos Estados Unidos e de seus aliados Austrália e Coreia obtiveram indenização pelos efeitos colaterais do produto químico altamente tóxico. Isso inclui deformidades graves em filhos desses soldados.

A gigante química alemã Bayer, dona da Monsanto, e as outras empresas acusadas argumentaram que não podiam ser responsabilizadas pelo uso que os militares americanos fizeram de seu produto.

Tribunal na França

Para o agrônomo Leonardo Melgarejo, coordenador-adjunto do Fórum Gaúcho de Combate aos Agrotóxicos, a decisão do tribunal na França é um “atestado de ausência de culpa, para quem tem culpa. Ou seja, uma espécie de troféu”. “Passa um verniz de inocência e preocupação com a saúde pública, que não é real”, disse à RBA.

Conforme destacou, essas empresas são responsáveis por danos concretos a toda uma gama de direitos humanos. “E gastam milhões na formatação de discursos ilusórios. Com certeza se beneficiarão de todo elemento que contribua para desviar o foco de dramas reais”.

“Isso fica evidente em publicação recente da FIAN, bem como posicionamento do relator especial da ONU sobre produtos tóxicos. Alias, é o terceiro relator da ONU a apontar os mesmos crimes, o que demonstra a longevidade da prática e a fragilidade dos governos quando o assunto é agrotóxicos e os direitos humanos”.

Vietnã no Brasil

Para o geógrafo Marcos Pedlowski, professor e pesquisador da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) a decisão isenta as corporações produtoras de venenos agrícolas. “Além disso, contribui para a dupla moral dos países sede dessas companhias, que proíbem muitos deles dentro dos seus territórios. Mas liberam para venda no sul global ou permitem o seu uso como arma de guerra”, disse.

Conforme ele, o uso recente de agrotóxicos como armas químicas contra comunidades indígenas e quilombolas no Brasil mostra que a herança da Guerra do Vietnã está muito viva. “O que me parece evidente é que na inexistência de estruturas de contenção do avanço do latifúndio agroexportador sobre territórios ocupados por comunidades tradicionais, o agrotóxico está se tornando mais um instrumento para a sua remoção de áreas alvo para a implantação de monoculturas de exportação.”

“Em outras palavras, está se usando os agrotóxicos na sua função original, já que foi criado para serem armas químicas”, ponderou Pedlowski.


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