Tragédia humanitária

Má condução do governo aprofundou crise de covid-19 na Índia

Pesquisador britânico, em entrevista à RBA, aponta que o fato de Índia e Brasil terem sido duramente atingidos pela covid se deve em parte a seus líderes

Press Information Bureau-Governo da Índia
Press Information Bureau-Governo da Índia
Os números da covid-19 no Brasil seguem entre os mais elevados do mundo. Entretanto, o avanço da vacinação segue produzindo resultados positivos. Até o momento, 22,68% dos brasileiros estão imunizados

São Paulo – Neste sábado (1º), a Índia ultrapassou, pela primeira vez, a marca de 400 mil casos de covid-19 em um período de 24 horas. Segundo dados oficiais, foram 401.993 contaminações depois de dez dias consecutivos acima da faixa dos 300 mil. O total de mortes decorrentes da doença chegou a 211.853, com os 3.523 óbitos registrados ontem.

E os dados, assustadores por si, estão ainda subestimados. “Os números sobre as infecções pela covid que o governo está divulgando são na verdade uma subestimativa”, afirmou ao The Observer o secretário-geral da Associação de Médicos de Serviços de Saúde em Bengala Ocidental Manas Gumta. “Acredito que o número real de pessoas que morrem de covid é duas a três vezes maior do que o que o governo está relatando. E o número de infecções pode ser até cinco vezes maior do que o relatado pelas autoridades indianas.”

A devastadora segunda onda da pandemia tem levado o sistema de saúde à superlotação, com doentes à espera de atendimento médico e falta de suprimentos nos hospitais. Na semana passada, a Suprema Corte indiana determinou ao governo do primeiro-ministro Narendra Modi a elaboração e execução de um “plano nacional” para o fornecimento de oxigênio e medicamentos para o tratamento de pacientes com covid-19.

Na sexta-feira (30), o ministro de Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, enfatizou a necessidade de fortalecer o suprimento de oxigênio e expandir a produção de vacinas em conversa telefônica com o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken. O diálogo ocorreu horas depois que os três primeiros voos vindos dos EUA aterrissaram em Nova Delhi levando 423 cilindros de oxigênio e reguladores doados pelo estado da Califórnia, 960 mil testes rápidos de diagnóstico e 100 mil máscaras N95 fornecidas pela USAID. Outros dois voos são esperados até segunda-feira (3).

As causas do desastre indiano

O atual cenário da Índia deriva em grande parte de uma condução equivocada em relação ao enfrentamento da pandemia. “Houve alegações anteriores de que a Índia havia atingido a imunidade de rebanho por meio de infecções pela covid-19 adquiridas naturalmente. No entanto, essas alegações são perigosas e agora vemos que estão completamente erradas. Houve uma mistura significativa de populações suscetíveis, o que causou essa nova onda”, aponta o pesquisador sênior em Saúde Global da Universidade de Southampton, Michael Head, em entrevista à RBA.

Com a segunda onda da doença em seu início, o governo permitiu comícios eleitorais em larga escala, autorizando também a realização do festival religioso Kumbh Mela, provocando a aglomeração de milhões de peregrinos para se banharem no rio Ganges. As imagens que circularam em todo o mundo mostram a maioria das pessoas sem máscaras e sem respeito a um distanciamento social mínimo.

Ao comparar a atual situação de Índia e Brasil, Michael Head vê como ponto em comum a postura dos chefes de Estado. “Ambos os países foram duramente atingidos pela covid-19, e isso se deve em parte à má governança de seus líderes políticos. Bolsonaro fez muitos comentários inúteis durante a pandemia e Modi e sua equipe encorajaram aglomerações e declararam que a Índia estava na ‘fase final da pandemia'”, pontua.

O primeiro ministro Narendra Modi em cerimônia oficial no sábado (1º)

Assim como no Brasil, na Índia foi detectado o surgimento de uma nova variante do coronavírus, a B.1.617, que pode ser mais transmissível. Além da possibilidade de novas cepas, a força da segunda onda na Índia pode comprometer também o fornecimento de imunizantes para outros países, já que o país é um dos maiores produtores de insumos e vacinas do mundo. “A Índia provavelmente reduzirá as exportações de vacinas para outros países enquanto trata de sua própria epidemia. Isso terá um efeito indireto em termos de distribuição de vacinas para a Covax e outros países. Assim, outras populações permanecerão desprotegidas e sustentarão a pandemia por um período mais longo”, pontua o pesquisador.

Confira abaixo a íntegra da entrevista de Michael Head, feita por e-mail.

Na sua avaliação, o que influenciou mais no agravamento da atual onda de covid-19 na Índia, a variante B.1.617 ou o relaxamento das medidas de restrição?

Houve alegações anteriores de que a Índia havia atingido a imunidade de rebanho por meio de infecções pela covid-19 adquiridas naturalmente. No entanto, essas alegações são perigosas e agora vemos que estão completamente erradas. Houve uma mistura significativa de populações suscetíveis, o que causou essa nova onda. Ainda não sabemos muito sobre quais variantes estão impulsionando o aumento acentuado de casos, mas essencialmente muitas dessas variantes são bem-sucedidas em causar níveis elevados de transmissão.

É possível estimar o tamanho da subnotificação de casos na Índia? Como isso interfere na elaboração de estratégias de enfrentamento à covid-19?

A Índia tem uma taxa de positividade em testes de cerca de 20%, e são métricas como esta que indicam que certamente existe subnotificação significativa de casos e mortes. Vão haver alguns modelos para estimar os casos e mortes com mais precisão, mas é difícil saber com certeza quais são os verdadeiros números.

Como a atual crise de saúde pode afetar o fornecimento de vacinas para outros países, já que a Índia é um dos principais produtores tanto de vacinas quanto de insumos?

A Índia provavelmente reduzirá as exportações de vacinas para outros países enquanto trata de sua própria epidemia. Isso terá um efeito indireto em termos de distribuição de vacinas para a Covax e outros países. Assim, outras populações permanecerão desprotegidas e sustentarão a pandemia por um período mais longo. Isso mostra as dificuldades de depender tanto de um país para a fabricação de uma vacina de que o mundo inteiro precisa.

Que semelhanças (e erros) você vê entre a condução da pandemia na Índia e no Brasil?

Ambos os países foram duramente atingidos pela covid-19, e isso se deve em parte à má governança de seus líderes políticos. Bolsonaro fez muitos comentários inúteis durante a pandemia, e Modi e sua equipe encorajaram aglomerações e declararam que a Índia estava na “fase final da pandemia”.

Como países com grandes populações como Brasil e Índia podem representar uma ameaça à saúde global com uma pandemia descontrolada?

A covid-19 se espalhou pelo mundo em apenas alguns meses. Onde os países têm populações mais suscetíveis à infecção pelo coronavírus, esse processo continuará. Também existe potencial para que mais variantes preocupantes surjam de países com uma carga elevada da doença.

A partir de agora, o que a comunidade internacional e o próprio governo indiano podem fazer para tentar conter a pandemia no país?

As intervenções que evitam aglomerações, como bloqueios, provavelmente serão necessárias na Índia. Uma implementação mais rápida da vacinação e boas mensagens de saúde pública são outros fatores que podem ajudar. No final das contas, vai demorar um pouco para a Índia recuperar o controle dessa grande onda. A comunidade internacional ajudou enviando suprimentos urgentes, como oxigênio, e devemos responder às necessidades da Índia e de outros países que estão lutando contra a epidemia de covid-19.


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