Alívio, mas sem ilusões

Celso Amorim: ‘Mudança de estilo com Biden pode representar milhares de vidas’

Ex-chanceler Celso Amorim não se ilude. EUA seguirão seus interesses. Mas novos ares dão “um certo alívio” e deixarão governo Bolsonaro mais isolado

Valter Campanatto/ABR
Valter Campanatto/ABR
“Vai haver uma mudança de estilo, o que dará um pouco mais de tranquilidade às relações internacionais”

São Paulo – O ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim diz não ter ilusões com a posse de Joe Biden nos Estados Unidos. Para ele, a posse, depois de um ato de ameaça ao Capitólio, “dá um certo alívio”. Mas os Estados Unidos continuarão a buscar seus interesses. “E muitas vezes esses interesses entrarão em contradição com os nossos, os países da América Latina e países em desenvolvimento. Isso não vai mudar. Entretanto, a mudança no estilo conta”, observa Amorim, que foi também ministro da Defesa. “Costumo dizer que, em política, e política internacional especialmente, os matizes podem representar muitas milhares de vidas, e a gente não pode desprezar esse fato”, acrescenta.

Para o diplomata, vai haver uma melhora nas relações entre os EUA e os organismos internacionais. “E vai deixar mais isolado o governo brasileiro, se não mudar essas posições de extrema direita, e é muito difícil que mude. Isso é positivo para a América Latina e América do Sul.” 

Biden tomou posse exatas duas semanas após o inédito ataque extremista ao Capitólio por seguidores do agora ex-presidente Donald Trump, o republicano que rachou seu partido e dividiu o país. Como o brasileiro Jair Bolsonaro, ele minimizou a pandemia de covid-19, menosprezou a ciência, passeou e foi a eventos oficiais sem máscara e defendeu a cloroquina como droga eficiente contra o vírus. Como resultado, os EUA são hoje líderes no ranking em número de casos (25 milhões) e mortes (414 mil). O Brasil de Bolsonaro é o segundo no mundo em óbitos (213 mil) e o terceiro em infectados (8,6 milhões), atrás da Índia (10,6 milhões), que aparece em terceiro em mortes (153 mil).

Repercussões

“Sobre o Brasil, evidentemente a mudança nos EUA tem repercussões, porque temos aqui um governo cujo esteio principal é a extrema direita, ligada ao Trump. Basta ver que Trump, no seu último dia, deu indulto ao Steve Bannon, o principal ideólogo da extrema direita”, observa Amorim. “Claro, isso não quer dizer que os Estados Unidos vão deixar de ser protecionistas nisso ou naquilo, que vão defender interesses diferentes na OMC. Mas vão conduzir as coisas de outra maneira, o que permite mais diálogo.”

Ao explicar o caráter positivo da mudança com Biden, Celso Amorim cita como exemplo o ex-presidente democrata Jimmy Carter, que governou os EUA entre 1977 e 1981. “Estava defendendo interesses americanos, claro, mas acabou tendo um papel positivo. Na época, no Brasil, eram governos militares e começou a haver mudanças, porque até as elites econômicas, midiáticas, nos países, não gostam de brigar com os Estados Unidos.”

Atitudes menos agressivas em relação à Venezuela, por exemplo, ainda que Biden não altere inicialmente a posição em relação ao país sul-americano, pode ser um exemplo de que os ares mais “positivos” na Casa Branca podem até mesmo evitar mortes, inevitáveis num conflito militar. Há um ano, Trump anunciou que reconhecia Juan Guaidó, líder da oposição golpista, como presidente interino do país sul-americano.

“Vai haver uma mudança nesse estilo, o que dará um pouco mais de tranquilidade às relações internacionais”, avalia o ex-chanceler brasileiro. “A defesa que Biden tem feito do multilateralismo é melhor do que ter ações puramente unilaterais, baseadas na força ou ameaça da força, seja econômica ou militar”.