'Não é qualquer esperança'

Depois de temporada de dor, sangue e medo, há sede de justiça na Bolívia

Direita cometeu muitos crimes durante o golpe. Para jornalista, decisão da Justiça da Bolívia favorável a Evo aponta para um novo ambiente institucional no país

Cobertura coletiva: TZU
Cobertura coletiva: TZU
A tensão criada pelos ideólogos do golpe durou até o dia eleição. Agora, Bolívia tenta construir ambiente pacificado, inclusive com participação do sistema de Justiça que perseguiu Evo

São Paulo – A Justiça da Bolívia anulou uma ordem de prisão que havia sido emitida contra o ex-presidente Evo Morales. Evo havia sido “denunciado” por “crimes de sedição em terrorismo”, depois de ter sido alvo do golpe que o obrigou a renunciar a deixar o país. O presidente do Tribunal Departamental de Justiça de La Paz, Jorge Quino, afirmou nesta segunda-feira (26) que o direito à defesa de Evo Morales foi desrespeitado. Evo ainda não se decidiu sobre quando retornará ao país, o que pode ocorrer até o dia 11 de novembro, quando completaria um ano de exílio.

A primeira decisão da Justiça da Bolívia favorável ao líder do Movimento ao Socialismo (MAS) ocorre poucos dias depois de uma contundente vitória do partido nas urnas, em 18 de outubro. O MAS elegeu presidente o ex-ministro da Economia Luis Arce e uma maioria absoluta na Câmara e no Senado. Para a jornalista brasileira Vanessa Oliveira, especialista em América Latina, a decisão favorável a Evo pode ser sintoma de um novo ambiente institucional no país. A direita perdeu força e os acusadores padecem de falta de sustenção jurídica e política para persegui-lo.

Doutora em Ciências Sociais pelas Universidade de Paris 8 e Federal do ABC, e professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, Vanessa Oliveira esteve na Bolívia como integrante da Missão de Observação e Acompanhamento Eleitoral Indígena durante as eleições. A jornalista explica a possibilidade de um acordo pacificador diante do cenário ainda tenso: “Evo foi ameaçado de morte. Familiares dele, parlamentares, membros do governo e do MAS tiveram casas incendiadas. Pessoas foram barbaramente agredidas. A extrema direita cometeu muitos crimes de lesa humanidade nos últimos 11 meses. Muita gente resistiu calada, até mesmo dentro das instituições. Agora, todos na Bolívia estão com desejo de justiça e paz”, avalia

O golpe escancarado

Vanessa menciona, como ilustração, a fala de um integrante da Defensoria Pública, sobre “retomada do processo de transformação”. Chegou a usar o termo “revolução” para se referir a uma “correção de erros” cometidos durante as gestões de Evo causaram insatisfação de suas bases em nome de um neodesenvolvimentismo e de uma suposta governabilidade.

“As pessoas ficaram entrincheiradas? Sim, porque a violência do golpe foi explícita. Mas não deixou de existir resistência nas ruas. Não deixou de haver diálogo nas comunidades e trabalho de base. A democracia comunitária explodiu no dia da eleição”

O clima de tensão nos dias que antecederam as eleições foi respirado nas primeiras horas pelos observadores. “Para se ter ideia, os bolivianos estavam preparados para o pior. Havia até plano de fuga para retirada dos observadores do país por terra em caso de nova ond de agressões por parte dos golpistas”, relata a pesquisadora. Sua delegação chegou no dia 15. No dia seguinte, o ministro de Governo, Arturo Murillo, postou ameaça velada a observadores, via Twitter, do tipo “sabemos quem vocês são e onde estão”.

Para ela, a forte “democracia comunitária” exercida a partir das periferias, de baixo para cima, foi o motor para o trunfo eleitoral que surpreendeu a direita boliviana e a geopolítica ocidental.

O golpe envergonhado

“As pessoas ficaram entrincheiradas? Sim, de certa forma, porque a violência do golpe foi explícita. E levou as pessoas a se recolherem. Mas não deixou de existir resistência nas ruas. Não deixou de haver diálogo nas comunidades e trabalho de base. A democracia comunitária construída ao longo da última década atuou de baixo para cima e explodiu democraticamente no dia da eleição”, afirma.

Essa explosão, segundo Vanessa Oliveira foi decisiva para inibir qualquer “recaída” institucional por parte dos setores que apoiaram o golpe – inclusive setores da mídia e da Justiça da Bolívia e de organismos internacionais. “O apoio internacional ao golpe, equivocado durante a execução, passou à condição de envergonhado perante o resultado das urnas. Quem construiu a falsa argumentação da fraude há um ano tinha obrigação de organizar agora uma eleição acima de qualquer suspeita. Voltar a falar em fraude agora seria uma total desmoralização”, explica. E cita a participação da ONU – via Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) – e da Organização dos Estados Americanos (OEA) na tentativa de legitimação do golpe de 2019.

A jornalista Vanessa Oliveira, durante visita a uma zona eleitoral de Santa Cruz de La Sierra: temor era tanto que havia plano de fuga para observadores internacionais (Acervo pessoal)

Força das mulheres e da base

“Os resultados mostraram que a elite boliviana não conhece o povo de seu país. Nesses meses todos de golpe, expuseram um ódio sangrento, mais do que de classe, de raça. Fizeram do golpe que depôs Evo Morales uma espécie de revanche racial. Isso num que tem mais de 85% da população formada por 36 etnias indígenas”, diz a observadora, que acentua a destacada participação das mulheres, tanto no processo de resistência quanto no resultado das eleições. “Mulheres conquistaram 20 das 36 cadeiras no Senado (56%). E 10 das 21 conquistadas pelo MAS”, destaca Vanessa. Na Câmara Baixa, são 62 dos 130 parlamentares (48%).

A pesquisadora considera que a “dialética deste momento” – os resultados da votação na Bolívia e plebiscito no Chile, uma semana depois, pelo fim da Constituição da era Pinochet – não pode ser desperdiçada. Guardadas as devidas proporções geográficas, políticas e culturais, observa ela, foram dois casos em que a esquerda e o campo democrático têm de prestar atenção.

“Pela movimentação nas bases, pela dramatização como forma de linguagem, pela recuperação de símbolos históricos de luta”, explica. “São cenários que enchem a gente de esperança. E não é uma esperança qualquer. São o calor das ruas, o foco na unidade e na superação de diferenças, a democracia construída e exercida nas bases nos dizendo: a gente está no jogo.”

O MAS parece ter “aprendido outra lições com o golpe, como avalia Vanessa. “A Bolívia caminha para votar uma lei de meios”, afirma a jornalista. Para ela, a consolidação da democracia passa pela democratização do acesso à informação. “Os movimentos sociais sentiram a dificuldade de fazer com que a “narrativa da resistência” circulasse enquanto o golpe da direita se estabelecia, inclusive com apoio da mídia global.

Show de horrores

Coube aos canais comunitários de comunicação fazer com que o mundo tivesse alguma noção do que estava ocorrendo na Bolívia nos meses que se seguiram ao golpe de novembro de 2019. Com todas as dificuldades técnicas de se produzir com um padrão profissional de qualidade. E com todo esforço do mundo para se romper as bolhas das redes sociais hoje dominadas pela extrema direita.

Uma das cenas mais chocantes foi a da agressão sofrida pela prefeita da cidade de Vinto, Patricia Arce Guzmán, no Departamento de Cochabamba, em 7 de novembro. Chamando-a de “assassina”, mascarados a arrastaram pelas ruas descalça, cortaram seu cabelo e jogaram tinta vermelha. Patricia Arce foi agora eleita senadora. “Foi horrível o que passei. Mas a sensação de estar do lado certo da história não tem preço”, disse.

Patrícia Arce, Bolívia: hoje é outro dia – https://bemblogado.com.br/site/
justiça bolívia
Patricia Arce, no dia da agressão e no dia da eleição (Via Bem Blogado)

Para se ter noção da relevância da comunicação alternativa comunitária, a jornalista Vanessa Oliveira recomenda um vídeo documental produzido pelo canal Bolívia Ahora, mantido por um grupo de comunicadores indígenas. O vídeo, de 20 minutos, correu as redes sociais na semana que antecedeu a eleição compilando cenas e fatos dos dias que antecederam e sucederam o golpe. “Acho que o mundo não tinha noção da violência e do ódio que moveram o golpe.” Confira o vídeo:


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