Papel do Estado

Corte Interamericana: direitos econômicos e sociais precisam ser garantidos na pandemia

Para juiz, Estados devem garantir sustentação dos excluídos, sem suprimir liberdades

Corte Interamericana de Direitos Humanos
Corte Interamericana de Direitos Humanos
Juiz Manrique: a boa ação governamental deve respeitar a ciência

São Paulo – As estratégias dos países para enfrentar a pandemia de coronavírus devem ter como marco o respeito ao Estado de direito, lembra o juiz Ricardo Pérez Manrique, da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Corte divulgou uma declaração (confira abaixo) sobre esse período excepcional, em que defende o multilateralismo e sustenta que os desafios “devem ser enfrentados por meio do diálogo e da cooperação internacional e regional conjunta, solidária e transparente”.

Os países da região adotaram medidas aceitáveis, que devem ter os direitos humanos como limite, diz Pérez Manrique, ex-presidente da Suprema Corte de Justiça do Uruguai. Ele está em Montevidéu há aproximadamente 50 dias, também cumprindo quarentena. Estava no Uruguai quando se noticiou o primeiro caso no país. Lá, o isolamento é voluntário, conta, mas há pouca gente nas ruas. “Estão suspensas todas as aulas e os espetáculos públicos, e os centros comerciais estão fechados.”

Uma das preocupações, diz o juiz, que completará 73 anos em maio, é de possíveis excessos de restrição de liberdade, em consequências das medidas adotadas para conter a pandemia. As limitações devem ser “temporárias”, ressalta, se posicionando contra situações de “controle absoluto do Estado”.

Ele reconhece como um dos principais desafios garantir a sobrevivência das pessoas e, ao mesmo tempo, preservar a economia. “É um momento absolutamente inédito. A economia se ressente ainda mais em regiões como a América Latina. Somos o continente mais desigual do planeta. Há uma quantidade grande de pessoas excluídas do processo econômico. E há uma obrigação dos Estados de auxiliar essas pessoas com aportes que satisfaçam suas necessidades básicas, respeitando a dignidade humana”, afirma, defendendo um “esforço especial” neste momento.

Violência e informação

“O Estado deve cumprir o contrato social, protegendo as pessoas diante de um ataque à sua saúde. Por outro lado, há necessidade de mecanismos multilaterais, que trabalhem em conjunto para superar essa situação”, afirma Manrique. Ele lamenta que existam governos “atacando o multilateralismo” e às vezes até competindo, de certa forma, por equipamentos médicos.

Quanto a alguns relatos sobre aumento de casos de violência doméstica durante o isolamento, o magistrado lembra que esse é um dos itens da declaração da Corte, pedindo “a necessária proteção para mulheres, crianças, idosos”. “É imprescindível reforçar a atenção às vítimas. Creio que é necessários que os Estados estejam muito atentos, em condições de dar espaço para que as vítimas possam fazer as denúncias, via internet, por exemplo. A experiência mostra que isso (confinamento) potencializa atos violentos, vinculados à violência de gênero.”

Outro item do documento enfatiza a necessidade de proteger a integridade física e a liberdade de expressão por parte dos jornalistas. O ponto se relaciona com a disseminação de notícias falsas, as chamadas fake news. “Creio que aí aparece um delicado equilíbrio entre a liberdade de expressão nas redes e a necessidade de informação séria, de que todos nos alimentamos.”

E qual deve ser o papel das autoridades, considerando que algumas parecem questionar as recomendações das autoridades sanitárias? “As medidas que se tomem devem ter fundamento na ciência”, afirma o juiz. “A boa ação governamental passa por escutar as políticas científicas.”

Confira a Declaração da Corte Interamericana:

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, como órgão de proteção dos direitos humanos, consciente dos problemas e desafios extraordinários que os Estados americanos, a sociedade como um todo, cada família e cada indivíduo estão enfrentando como resultado da pandemia global causada pelo coronavírus COVID-19, emite a presente declaração para exortar à adoção e implementação de medidas, dentro da estratégia e dos esforços que os Estados Membros da Convenção Americana sobre Direitos Humanos estão realizando para enfrentar e conter esta situação, que diz respeito à vida e à saúde pública. As medidas devem ser tomadas no âmbito do Estado de Direito, em plena observância aos instrumentos interamericanos de proteção dos direitos humanos e à jurisprudência deste Tribunal. Em particular, considera-se que:

  • Os problemas e desafios extraordinários causados pela atual pandemia devem ser enfrentados por meio do diálogo e da cooperação internacional e regional conjunta, solidária e transparente entre todos os Estados. O multilateralismo é essencial para coordenar os esforços regionais para conter a pandemia.
  • Os organismos multilaterais, qualquer que seja sua natureza, devem ajudar e cooperar conjuntamente com os Estados, sob uma abordagem de direitos humanos, na busca de soluções para os problemas e desafios presentes e futuros que a atual pandemia está causando e causará.
  • Todas as medidas adotadas pelos Estados para enfrentar esta pandemia que possam afetar ou restringir o gozo e o exercício de direitos humanos devem ser limitadas no tempo, legais, condizentes com os objetivos definidos conforme critérios científicos, razoáveis, estritamente necessárias e proporcionais e consistentes com os demais requisitos desenvolvidos na legislação interamericana de direitos humanos.
  • Deve-se ter cuidado para que o uso da força para implementar as medidas de contenção por parte dos funcionários encarregados do cumprimento da lei esteja em conformidade com os princípios de necessidade absoluta, proporcionalidade e precaução, de acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana.
  • Dada a natureza da pandemia, os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais devem ser garantidos sem discriminação a todas as pessoas sob a jurisdição do Estado e, em particular, àqueles grupos que são desproporcionalmente afetados por estarem em situação de maior vulnerabilidade, como idosos, crianças, pessoas com deficiência, migrantes, refugiados, apátridas, pessoas privadas de liberdade, LGBTI, mulheres grávidas ou em período pós-parto, comunidades indígenas, afrodescendentes, pessoas que vivem do trabalho informal, população de favelas e bairros de moradia precária, pessoas em situação de rua, pessoas em situação de pobreza e profissionais da área de saúde que lidam com esta emergência.
  • Nestes momentos, adquire ênfase especial a garantia, de forma oportuna e apropriada, dos direitos à vida e à saúde de todas as pessoas sob a jurisdição do Estado, sem qualquer discriminação, incluindo aos idosos, migrantes, refugiados e apátridas, e membros de comunidades indígenas.
  • O direito à saúde deve ser garantido respeitando-se a dignidade humana e observando-se os princípios fundamentais da bioética, em conformidade com os padrões interamericanos quanto à sua disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade, adequados às circunstâncias geradas por esta pandemia. Portanto, os trabalhadores e as trabalhadoras da área de saúde devem receber os suprimentos, equipamentos, materiais e instrumentos que protejam sua integridade, vida, saúde, e que lhes permitam desempenhar seu trabalho em termos razoáveis de segurança e qualidade.
  • Tendo em vista as medidas de isolamento social que podem levar a um aumento exponencial da violência contra mulheres e meninas em suas casas, é necessário enfatizar o dever do Estado de devida diligência estrita com respeito ao direito das mulheres a viverem uma vida livre de violência e, portanto, todas as ações necessárias devem ser tomadas para prevenir casos de violência de gênero e sexual; ter mecanismos seguros de denúncia direta e imediata; e reforçar a atenção às vítimas.
  • Dado o alto impacto que a COVID-19 pode ter com relação às pessoas privadas de liberdade em prisões e outros centros de detenção e, tendo em vista a posição especial de garantidor do Estado, é necessário reduzir os níveis de superlotação e superpopulação para, dessa forma, promover de forma racional e ordenada alternativas à privação de liberdade.
  • Deve-se ter o cuidado para que se preservem os postos de trabalho e se respeitem os direitos trabalhistas de todos os trabalhadores e trabalhadoras. Também devem ser adotadas e promovidas medidas para mitigar o possível impacto sobre as fontes de trabalho e renda de todos os trabalhadores e trabalhadoras, assegurando-se a renda necessária à subsistência em condições de dignidade humana. Em razão das medidas de isolamento social e do impacto que isso gera na economia pessoal e familiar, deve-se buscar mecanismos para fornecer alimentos e remédios básicos, bem como, suprir outras necessidades elementares para aqueles que não possam realizar suas atividades normais, e também para a população em situação de rua.
  • O acesso à informação verdadeira e confiável, assim como à Internet, é essencial. Medidas adequadas devem ser tomadas para garantir que o uso da tecnologia de vigilância, para monitorar e rastrear a disseminação do coronavírus COVID-19, seja limitado e proporcional às necessidades de saúde, e não envolva uma interferência desmedida e lesiva à privacidade, à proteção de dados pessoais e à observância ao princípio geral de não-discriminação.
  • É indispensável que se garanta o acesso à justiça e aos mecanismos de denúncia, bem como que se proteja, particularmente, a atividade das/dos jornalistas, e das defensoras e defensores de direitos humanos, a fim de monitorar todas as medidas adotadas que afetam ou restringem os direitos humanos, com o objetivo de avaliar sua conformidade com instrumentos e normas interamericanas, assim como, suas consequências para os indivíduos.
  • É pertinente alertar aos órgãos ou agências responsáveis pelo combate à xenofobia, racismo e qualquer outra forma de discriminação, para que tomem extremo cuidado no sentido de garantir que, durante a pandemia, ninguém promova surtos dessa natureza por meio de denúncias falsas ou incitação à violência.


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