Peronismo

De crise econômica à política externa, governo de Alberto Fernández terá enormes desafios

Presidente argentino herda um país arrasado pelo neoliberalismo de Mauricio Macri e estará "cercado" por governos direitistas no Mercosul

Twitter/Alberto Fernández
Twitter/Alberto Fernández
A continuidade da união do peronismo, com Cristina e Fernández, é fundamental para o novo governo

São Paulo – O que não faltam ao governo do presidente da Argentina, Alberto Fernández, que tomou posse na terça-feira (10),  são desafios. O primeiro deles são os graves problemas econômicos e sociais que herdou do governo neoliberal de Mauricio Macri. O novo governo corre para articular com o Congresso o que chama de Lei de Solidariedade e Reativação Produtiva, que está de acordo com o discurso de posse de Fernández, no qual ressaltou justamente a solidariedade. “Queremos começar a trabalhar para os pobres da Argentina. Esperamos que o Congresso tenha muita participação, entendendo a gravidade da situação “, disse na quinta-feira (12) o chefe de Gabinete de Fernández, Santiago Cafiero.

O país está em profunda crise, com inflação altíssima (4,3% em novembro e 48,3% em 2019), endividamento externo de US$ 101 bilhões, dos quais US$ 57 bilhões com o Fundo Monetário Internacional (FMI), desemprego e miséria crescentes.

Ao montar seu  ministério, o presidente  incorporou representantes da esquerda kirchnerista, mas também nomes com bom trânsito em organismos internacionais ou reconhecidos entre economistas mundialmente. O ministro da Economia, por exemplo, Martín Guzmán, foi aluno e colaborador do economista Joseph Stiglitz. No Banco Central, o nome é Miguel Angel Pesce, que já presidiu interinamente a instituição, no mandato de Cristina Kirchner.

Mercedes Marcó del Pont, ex-diretora do Banco Central durante o governo de Cristina, será responsável pela Administradora Federal de Ingresos Públicos de la Nación Argentina (Afip), equivalente à Receita Federal brasileira. Ela foi presidenta do Banco Central com Cristina, mas também consultora das Nações Unidas, do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

“São nomes à esquerda, mas que transitaram nesses organismos internacionais. O kirchenrismo mais radical os descartaria”, diz Fabio Borges, professor de Relações Internacionais e Integração na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).

Ele lembra que Guzmán não é propriamente kirchnerista. Tem formação nos Estados Unidos e é próximo de Stiglitz. “O que sinaliza ao mercado algo mais moderado do que o kirchnerismo. Ele já tenta negociar com setores industriais e empresariais. Se o próprio Stiglitz representa o setor progressista, ele também dá consultoria ao Banco Mundial”, avalia. “Os membros da equipe participam de instituições internacionais, são do mainstream, apesar de críticos.”

Na opinião de Borges, ao colocar um economista ligado a Stiglitz, Fernández sinaliza moderação. “Não é uma ruptura. Ele quer manter relação com os organismos internacionais, não romper. É um pouco diferente da perspectiva da Cristina.”

Não se pode perder de vista que a união do peronismo, conseguida pela estratégia de Cristina de abrir mão da cabeça de chapa, levou a esquerda à vitória. A continuidade dessa união é capital para o governo. “Quando o peronismo se une na Argentina, ele se torna imbatível”, aponta Borges.

Se o grande desafio de Fernández é fazer a economia voltar a crescer, “fazer os pobres voltarem a ter poder de compra, promover uma situação digna de vida, que se perdeu nos últimos quatro anos”, observa o professor da Unila, outro desafio é manter o peronismo unido e, ao mesmo tempo, tentar políticas e renegociação com as instituições internacionais, para equalizar melhor a crise social, em busca do crescimento. “Ele não quer romper, mas renegociar com o FMI.”

O analista destaca, por outro lado, a simbólica criação de um ministério novo, sinalizando o compromisso com setores de esquerda e movimentos sociais: o Ministério das Mulheres, de Gênero e da Diversidade, comandado pela advogada Elizabeth Gómez Alcorta, que defendeu a ativista indígena Milagro Sala.

E, no ministério da Segurança, o presidente nomeou a antropóloga e pesquisadora Sabina Frederic, indicando que a política será de distensão. Isso ficou emblematizado numa das primeiras medidas determinadas por Alberto Fernández: ele determinou, imediatamente após a posse, a retirada das grades com as quais Macri cercou a icônica Plaza de Mayo.

Política externa

O que não faltam para a Argentina com o novo presidente, portanto, são desafios. Outro deles são as relações exteriores, num contexto regional bastante desfavorável ao recém empossado governo peronista. “As relações exteriores são um tema importante para o país. Os argentinos estão rodeados de uma série de governos de direita. No Mercosul, a correlação de forças está muito desfavorável ao novo governo”, afirma. Além do Brasil de Bolsonaro, no bloco sul-americano Fernández vai conviver com os direitistas Luis Lacalle Pou (Uruguai) e Mario Abdo Benítez (Paraguai).

Apesar disso, no discurso de posse, Fernández destacou a importância do Mercosul e procurou minimizar a postura do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. “Com a República Federal do Brasil, em particular, temos que construir uma agenda ambiciosa, inovadora e criativa, na área tecnológica, produtiva e estratégica, apoiada pela irmandade histórica de nossos povos e que vá além de qualquer diferença pessoal daqueles que governam a conjuntura.”

Para Borges, a relação com o Brasil, devido à atual política externa, comandada pelo ministro Ernesto Araújo, é muito “temerosa”. “Vejo com muita preocupação. O problema é o lado brasileiro. O Brasil tem cometido muitas improvisações e está sendo muito pouco profissional na área. Ao contrário do que se dizia antes, que o Brasil era muito ideológico, nesse momento é que está ideológico e muito infeliz na condução da política externa.”

O analista ressalta que a relação de confiança entre Argentina e Brasil foi construída ao longo de quase um século. “E desconstruir isso é algo assustador. Acho que a Argentina vai tentar reconstruir alguma relação com o Brasil da forma pragmática possível. Mas não vai ser fácil.” O presidente Brasileiro, quebrando longa tradição, sequer compareceu à posse do colega. Ele enviou como representante o vice-presidente, general Hamilton Mourão.