Lições do levante

Chile: a queda de um ícone do neoliberalismo

Uma desigualdade única em termos de riqueza e renda, combinada com a comercialização total de muitos de seus serviços sociais e aposentadorias que dependem dos caprichos do mercado de ações, permaneceu "oculta" aos olhos dos observadores internacionais

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Não é comum em um país da OCDE várias pessoas sejam baleadas e mortas em dois dias de distúrbios de cunho social. (Talvez apenas a Turquia, com suas intermináveis ​​guerras contra os guerrilheiros curdos, se aproxime desse nível de violência). Mas foi o que o governo chileno, um ícone do neoliberalismo e da transição democrática, fez quando começaram os protestos que parecem não arrefecer, apesar das reformas cosméticas propostas pelo presidente Sebastián Piñera.

A desgraça do Chile é sintomática dos padrões globais que revelam os danos causados ​​pelas políticas neoliberais nos últimos trinta anos, que vão desde privatizações no Leste Europeu e na Rússia, até a crise financeira global, passando pela austeridade europeia. O Chile foi considerado, em especial graças ao tratamento favorável da imprensa, como um exemplo de sucesso. As duras políticas que foram implementadas após a derrubada de Salvador Allende em 1973, e a onda de assassinatos que vieram depois, foram suavizadas pela transição democrática, embora suas principais características tenham sido preservadas. É verdade que o Chile teve um excelente índice de crescimento e, embora nas décadas de 1960 e 1970 estivesse no meio da tabela da América Latina em termos de PIB per capita, atualmente é o país mais rico da América Latina nesse quesito. Naturalmente, os elevados preços de sua principal matéria-prima para exportação, o cobre, também ajudaram. Mesmo assim, o sucesso de seu crescimento é indiscutível. O Chile recebeu o “prêmio” de entrar na OCDE, um clube de países ricos, e se tornou o primeiro país da América do Sul a acessá-lo.

O aspecto em que o país fracassou foi em suas políticas sociais, que muitas pessoas consideraram bem-sucedidas, ainda que pareça estranho. Nas décadas de 1980 e 1990, o Banco Mundial aplaudiu as políticas de “flexibilidade” do mercado de trabalho chileno, que consistiam em dissolver sindicatos e impor um modelo de negociação por setores entre trabalhadores e empregadores, em vez de permitir uma organização sindical global que pudesse negociar em nome de todos os trabalhadores. Ainda mais estranho é que o Banco Mundial o usou como um modelo de transparência e boa governança, que os países em transição no Leste Europeu deveriam copiar. O irmão do atual presidente chileno, descendente de uma das famílias mais ricas do Chile, ficou famoso por implementar, quando ocupou o cargo de Ministro do Trabalho e Previdência Social com Pinochet, um sistema público de aposentadorias segundo o qual os trabalhadores obrigatoriamente contribuíam com seus salários para um dentre vários fundos de pensão e, após se aposentarem, recebiam pensões de acordo com o desempenho dos investimentos realizados por esses fundos. As aposentadorias tornaram-se parte do jogo de roleta do capitalismo. Enquanto isso, os fundos de pensão, que frequentemente cobravam comissões exorbitantes e seus gerentes, ficaram ricos. José Piñera tentou “vender” esse modelo para a Rússia de Yeltsin e os Estados Unidos de George Bush, mas, apesar do forte (e compreensível) apoio das comunidades financeiras de ambos os países, ele não teve sucesso. Hoje em dia, a maioria dos aposentados chilenos recebe de 200 a 300 dólares por mês em um país cujo nível de preços (de acordo com o International Comparison Project, um projeto mundial liderado pela ONU e pelo Banco Mundial que compara os níveis de preços de todo mundo) é de aproximadamente 80% da dos Estados Unidos.

Embora o Chile lidere a América Latina em termos de seu PIB per capita, também o lidera em termos de desigualdade. Em 2015, seu nível de desigualdade salarial foi superior ao de qualquer outro país da América Latina, exceto Colômbia e Honduras. Ele até superou a desigualdade proverbialmente alta do Brasil. Os 5% mais baixos da população chilena têm um nível de renda próximo aos dos 5% mais baixos da Mongólia. Os 2% mais altos gozam de um nível de renda equivalente aos 2% mais ricos na Alemanha. Como se Dortmund e as favelas de Ulan Bataar estivessem reunidos em um só lugar.
A distribuição de renda no Chile é extremamente desigual, mas ainda mais é a distribuição de riqueza. Nesse aspecto, o Chile é atípico, mesmo se o compararmos com o resto da América Latina. De acordo com os dados publicados pela Forbes, em 2014, entre os bilionários do mundo, a riqueza combinada dos bilionários chilenos (havia 12 deles) foi igual a 25% do PIB do Chile. Os próximos países latino-americanos com maior concentração de riqueza foram o México e o Peru, nos quais o percentual de riqueza dos bilionários era de aproximadamente metade (13% do PIB). Melhor ainda: o Chile é o país em que a porcentagem de riqueza de bilionários, em relação ao PIB, é a mais alta do mundo (se excluirmos países como o Líbano e Chipre, onde existem muitos bilionários estrangeiros que “estancam” sua riqueza por razões fiscais). A riqueza dos bilionários chilenos, comparada com o PIB de seu país, excede até a dos russos.

Gráfico: Riqueza de bilionários em relação ao PIB total do país

Uma desigualdade tão única em termos de riqueza e renda, combinada com a comercialização total de muitos de seus serviços sociais (água, eletricidade etc.) e aposentadorias que dependem dos caprichos do mercado de ações, permaneceu “oculta” aos olhos dos observadores internacionais como resultado do sucesso do Chile em aumentar seu PIB per capita. Mas protestos recentes mostram que este último não é suficiente. O crescimento é indispensável para o sucesso econômico e para reduzir a pobreza, mas se não houver justiça social e um mínimo de coesão social, os efeitos do crescimento darão lugar a sofrimento, manifestações e, sim, a tiros nas pessoas.

* Tradução a partir de Revista Contexto. Original aqui.

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