O povo contra a banca

Equador ganha o primeiro round contra o FMI

Segundo Adoración Guamán, acumulação de forças fruto dos protestos nos últimos dias deve mudar o futuro do Equador e da América Latina. No curto prazo, contudo, o futuro ainda é incerto

Reprodução/CIDH
Reprodução/CIDH
Forças do Equador cometeram uma série de abusos ao direitos humanos na repressão aos protestos

São Paulo – Para a professora de Direito, doutora pela Universidade de Valencia e professora convidada da Flacso-Equador Adoración Guamán, os protestos de indígenas, estudantes e trabalhadores que tomaram as ruas das principais cidades do país nos últimos onze dias e levaram à derrubada do decreto que atendia às determinações do FMI – responsável pela elevação de 123% no preço dos combustíveis – representaram uma importante vitória do campo popular que deve repercutir não apenas no país, como também em toda a América Latina. Mas permanecem incertezas no curto prazo, se o governo enfraquecido de Lenín Moreno será capaz de manter as condições do acordo, contrariando os interesses da elite financeira do país e do exterior.

Na semana passada, em entrevista à Rádio Brasil Atual, Adoración afirmou que o seu país não vivia uma democracia, principalmente em função da repressão desmedida à onda de protestos que culminou em pelo menos sete mortos, segundo dados oficiais. A apuração dos abusos cometidos e o destino dos milhares de detidos, a maioria jovens, são algumas das questões em aberto.

Ela fez uma crônica sobre o desenrolar dos acontecimentos que culminaram no recuo por parte do governo. A lição, segundo Adoración, é que o neoliberalismo é incompatível com a democracia e com o bem-estar da maioria, e necessita do uso da força bruta para impor suas medidas de arrocho.

Confira baixo o texto na íntegra, com tradução da RBA, publicado originalmente na Revista Contexto:

No domingo, 13 de outubro, a cidade de Quito amanheceu em uma tensa calma, as ruas estavam praticamente vazias e o centro militarizado, enquanto os manifestantes permaneciam agrupados nos centros de acolhimento e descanso. O anúncio do início de uma negociação entre o governo e os diversos líderes do movimento indígena mantinha a situação em uma grande pausa, marcada por um estado de exceção com toque de recolher permanente.

Depois de 12 dias de mobilização e recrudescimento da repressão, os dados da Defensoria do Povo emitidos no mesmo dia 13 mostravam um saldo arrepiante. Até o momento, foram contabilizadas sete vítimas fatais, 1.152 detidos e 1.340 feridos. Além disso, os informes da Defensoria revelam indícios que permitem afirmar o uso desproporcional da força nas dinâmicas de repressão ao protesto: 22% dos detidos têm menos de 19 anos, incluindo muitos com menos de 15, porém os testemunhos relatam que não foram seguidos procedimentos específicos nestes casos; somente 24% das pessoas detidas foram colocadas à disposição da Justiça. Além disso, não foi demonstrada a existência de motivos que justificassem a detenção. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) também manifestou a sua preocupação pela escalada de violência, tanto por meio de um comunicado emitido no dia 9, como mediante uma série de tuítes em que, de forma pouco ortodoxa, mas efetiva, denunciava distintas violações de direitos humanos e exortava o governo a controlar o uso desmedido da força. A CIDH apontou, por exemplo, denúncias documentadas de práticas de tortura contra os detidos; uso aleatório de gás lacrimogênio contra comunidades indígenas; restrição do uso das redes sociais; corte do sinal de cadeias de televisão e rádio (como a Telesur e a Radio Pichincha) e agressões contra jornalistas. Os direitos à integridade física, à liberdade, segurança, expressão e informação foram gravemente afetados, segundo demonstram inúmeros vídeos e imagens registradas durante os protestos. Paralelamente, as últimas jornadas foram marcadas pela queima de edifícios públicos ou por agressões contra meios de comunicação privados, gerando uma elevadíssima tensão social, alimentada por um governo que insiste na sua estratégia de confrontação e utilização do correísmo como bode expiatório.

A tensão chegou a um ponto crítico neste sábado. Por um lado, o protesto desde cedo com a mobilização dos bairros mais humildes da capital. A marcha de mulheres e as centenas de pessoas que chegavam do norte da cidade evidenciava a ampliação do campo popular sublevado, uma reconfiguração fundamental que ressignificava os limites do conflito. Ficava claro que, com os indígenas, estudantes e movimentos sociais, se levantavam também o conjunto de despossuídos da sociedade. Das mais diferentes províncias, chegavam imagens de marchas e mobilizações de crescente intensidade. A resposta do governo se manteve na linha da militarização e no uso da força como elemento de gestão dos protestos. Ao meio-dia de sábado, foi anunciada a ampliação do toque de recolher, que passava a vigorar em Quito e nos arredores durante 24 horas. Diversos comunicados, já não do governo, senão do Comando Conjunto das Forças Armadas, matizaram um confuso decreto presidencial e se chegou a enviar mensagens de texto à população para informar a hora do início da restrição total de circulação. Os voos de chegada e saída a Quito começaram a serem cancelados, se estendeu o rumor, nunca confirmado, de corte de água e internet, o medo cobria os bairros nobres da capital ao mesmo tempo em que nos numerosos bairros populares desatavam protestos focalizados e duramente reprimidos. Ao cair a noite, circularam imagens de estudantes e médicos fazendo um cordão humanitário ao redor dos centros de acolhimento e emergência onde os feridos eram mantidos. Às oito da noite, desafiando o toque de recolher, um panelaço foi convocado na capital, exigindo o fim das medidas e da violência: a adesão foi massiva.

A necessidade de encontrar uma saída para o conflito era inadiável. Os meios de comunicação internacionais já começavam a abrir os canais de informação e as imagens de enfrentamento e o uso da força contra a população davam a volta ao mundo. Caída a noite, a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) emitiu comunicado afirmando que ia delegar uma “interlocução exploratória” para evitar um banho de sangue e desenhar medidas para sair da encruzilhada, acreditando no objetivo da derrogação do Decreto 883 (que elimina os subsídios aos combustíveis e que provocou a faísca que incendiou o conflito). Com a abertura da possibilidade de diálogo e a oferta da missão das Nações Unidas no país e a Conferência Episcopal para a mediação, as partes se reuniram no domingo, às três da tarde. A negociação devia ser transmitida ao vivo por diversos meios de comunicação.

Com três horas de atraso, depois de um dia de tensões e enfrentamentos permanentes fora da capital, no domingo, às seis da tarde, começou a reunião de várias horas que pudemos acompanhar ao vivo, ao menos parcialmente. Sob os olhares do Coordenador Residente do Sistema ONU no Equador, o presidente Moreno e vários membros do seu gabinete se sentaram à mesa de diálogo com diferentes líderes dos povos e nacionalidades indígenas do Equador. O começo foi desalentador, o presidente manteve o seu discurso já conhecido da confabulação castro-chavista com Correa na cabeça para desestabilizar o país, fazendo duras acusações aos “estrangeiros” que haviam entrado no Equador para orquestrar a sorte do golpe de Estado. A oferta foi mínima, não retiraria o decreto, mas negociaria medidas sociais para dividir entre os “mais necessitados” as economias resultantes da eliminação dos subsídios. A contestação dos líderes foi uma lição de dignidade, serenidade, força e… de como manejar a economia do país.

Forçar o governo a sentar e recuar na medida que consideravam ‘fundamental’ para o país foi uma vitória do campo popular

Jaime Vargas pela Conaie, Leonidas Iza pelo Movimento Indígena e Camponês de Cotopaxi (Micc) e Miriam Cisneros, presidenta do Povo Originário Kichwa de Sarayaku, tomaram a palavra em turno num debate que manejaram com desenvoltura, frente a um governo que demonstrou pouca capacidade de conhecimento dos dados para defender sua posição e com ofertas mínimas. Os movimentos se mantiveram firmes na exigência da derrogação do decreto, além disso denunciaram a inação do governo (“têm ministros vagos, senhor presidente”, chegar a dizer), reiterando a falsidade dos argumentos conspiratórios do governo, exigindo a destituição dos ministros de Defesa e Governo (Interior) e a publicação do completo conteúdo dos acordos com o FMI, dentre outras questões. Miriam Cisneros finalizou sua intervenção com redundância: “As lágrimas me secaram chorando por nossos filhos mortos. Que fique na sua consciência, presidente, todos os irmãos caídos”. Depois dessas palavras e de mais de uma hora de debate, o “mediador” das Nações Unidas decidiu convocar um intervalo de 15 minutos, que se converteu numa paralisação da transmissão por mais de uma hora e meia, enquanto a negociação seguia privadamente.

Quando às 21h40 voltaram a transmitir ao vivo, o acordo já estava redigido. As partes haviam consentido deixar sem efeito o decreto 883 e instalar uma comissão para elaborar um novo decreto em que participarão o governo, o movimento indígena, a Conferência Episcopal e as Nações Unidas. Em paralelo, firmava-se o compromisso do fim das mobilizações e o movimento indígena afirmava a volta às suas comunidades para “retomar a paz”. A tensão era evidente. Para fechar a sessão, o secretário particular do presidente tomou a palavra apontando que “aqui todos fizemos concessões”, e “não é uma derrota de ninguém”, e “nenhum ato de vandalismo ficará sem resposta”. Nenhum membro do governo disse nenhuma palavra relativa à repressão, às prisões ou feridos. Ao contrário, a ministra do Interior, María Paula Romo, ausente no debate, negava nesse momento, por meio da sua conta no Twitter, a existência de desaparecidos e sublinhava as “mentiras” na contagem de mortos e feridos.

Ao fim da transmissão, começaram a circular vídeos que davam conta da situação na sala de negociação e que evidenciavam que chegar a um acordo não ia ser tão fácil. Ao mesmo tempo em que, nas ruas, o movimento indígena e milhares de quitenhos celebravam a vitória política frente ao governo e o fim dos enfrentamentos, os negociadores discutiam em tom cada vez mais duro. Na sua conta no Twitter, o secretário particular do presidente afirmava: “Hoje trabalharemos na modificação  do decreto, que garanta como vamos racionalizar (grifos da autora) os subsídios e que não vá a quem não os necessitem. Nisso nos comprometemos!” Se comprometeram a isso?

Fechamos esta crônica à uma da madrugada, horário de Quito, todavia em uma espera tensa. Não é possível negar que ter chegado até aqui, ter forçado o governo a sentar e recuar numa medida que considerava “fundamental” para o país, é uma vitória do campo popular que, simbólica e materialmente, evidencia a reconfiguração das alianças. A acumulação de forças que foi tecida nesses dias e a clara identificação do inimigo comum (o FMI e as medidas neoliberais) vão marcar o futuro do país, até mesmo da região, mas o que ocorrerá no curto prazo segue sendo incerto. O acordo fundomonetarista é muito amplo, permanecem reformas trabalhistas, a liquidação do setor público, o assalto aos direitos dos funcionários, as isenções fiscais e anistia ao grande capital, incluindo a elevação do IVA (Imposto único)… Agora, a pergunta é: Poderá um governo debilitado por uma derrota como essa levar adiante as outras medidas? Poderá em sentido contrário se negar a cumprir um acordo já firmado com o FMI e com as elites econômicas que o sustentam? E mais próximo ainda: Quito acordará amanhã com um acordo que permita o fim desse conflito? Vão apurar as responsabilidades a respeito dos excessos do uso da força? O que vai acontecer com os detidos?

As dúvidas que se abrem neste fim do primeiro round são enormes. O que se pode afirmar é que, no Equador, confirmou-se o que já foi plasmado em outros cenários, como no Brasil: o neoliberalismo atual não apenas é incompatível com o bem estar das maiorias sociais, como também com a própria democracia. Os governos ligados ao fundomonetarismo precisam do uso da força para impor medidas econômicas e sociais exigidas pelo autoritarismo do mercado, seja por medidas de lawfare contra adversários políticos, seja por meio da repressão direta a manifestações de protesto contra a dura mão policial e militar. Mas os povos são duros, têm memória e se levantam.