Crise

Não há democracia no Equador hoje, denuncia pesquisadora

A professora da Universidade de Valencia e da Flacso Adoración Guamán aponta que nunca houve uma repressão tão violenta contra manifestações como a promovida por Lenín Moreno

Reprodução
Reprodução
Segundo dados oficiais, Cinco pessoas foram mortas, entre elas dois indígenas, e mais de 500 ficaram até agora

São Paulo – A insatisfação com as medidas neoliberais colocadas em prática pelo presidente do Equador Lenín Moreno, após acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), são a principal razão para a revolta popular que toma conta do país, de acordo com a avaliação da professora de Direito, doutora pela Universidade de Valencia e professora convidada da Flacso-Equador Adoración Guamán.

Ela destaca que a atual situação é preocupante em termos de violação de direitos humanos. As manifestações começaram no dia 2, após o anúncio de um pacote de iniciativas que, segundo ela, vão na direção do empobrecimento brutal da população, servindo à proteção de interesses econômicos dos grandes capitais. “A partir daí o Estado começou uma onda repressiva, decretando estado de emergência e depois o toque de recolher. E os feridos e detidos começam a se contar às centenas”, descreve.

O Equador chegou a ter sete presidentes diferentes no período de 10 anos antes da chegada de Rafael Correa ao poder, em 2007. Mobilizações lideradas pelo movimento indígena foram responsáveis pela queda de três mandatários no país, mas a movimentação atual tem características distintas das anteriores, ressalta Adoración.

“Os principais movimentos que participam dos protestos contra Moreno são, evidentemente, o movimento indígena e, em grande medida, os estudantes e as estudantes. Este protesto não acontece apenas em Quito, mas em todo o país, estamos recebendo informações das seis províncias amazônicas, onde estão as petroleiras, e de todas as cidades do Equador”, relata.

“Junto com o movimento indígena e os estudantes há os movimentos sociais, organizações de direitos humanos, coletivos de médicos, de universidades, feministas, professores… Todas e todos estamos acolhendo as marchas, atendendo, apoiando estudantes e professores de Medicina que estão trabalhando dia e noite para ajudar os feridos. Isto está se convertendo realmente em um clamor popular, totalmente transversal, que está aglutinando uma ampla frente de equatorianos contrária os cortes. Evidentemente o movimento indígena é líder indiscutível por sua potência e organização, mas não são somente eles e elas, há muitas pessoas que tomaram parte nessa luta pelos direitos de todo o povo equatoriano.”

Uma distinção crucial que separa a atual mobilização das anteriores é também a reação do governo. Nunca houve uma repressão tão brutal como a promovida pelo governo de Lenín Moreno, conta Adoración. “Este levante não é a primeira vez que acontece no Equador mas tem características muito particulares. Está claro, e a história mostra, que o povo equatoriano é um povo corajoso, os movimentos indígenas têm capacidade de organização e já derrubaram outros presidentes quando tomaram decisões contrárias a seus direitos. Mas agora há uma diferença, dizem os historiadores do país, e a diferença é o uso da violência por parte do governo, uma violência desmedida, uma violência cruel como nunca havia sido vista anteriormente”, aponta. “Estamos assistindo a uma propaganda das Forças Armadas e um discurso por parte do governo que nos remete diretamente às ditaduras dos anos 70.”

De acordo com dados oficiais divulgados nesta sexta-feira (11), cinco pessoas foram mortas no país, entre elas dois indígenas, e mais de 500 ficaram feridas durante os protestos.

A guinada à direita de Moreno e o cerco midiático

Eleito em 2017 pela Aliança Pais, que dava sustentação ao governo de Rafael Correa, a escolha de Moreno apontava para um governo de continuidade, mas não foi isso que aconteceu. Mesmo tendo sua imagem vendida como de alguém mais “moderado” em relação a seu antecessor, poucos esperavam a guinada de do atual mandatário. Entre as medidas anunciadas por ele estão o reajuste nos combustíveis, derivado do fim dos subsídios,flexibilizações na legislação trabalhista e demissão e redução de direitos para funcionários públicos.

Em entrevista ao site Jacobin, publicada em agosto de 2018 pelo Outras Palavras, o ex-ministro das Relações Exteriores de Correa Guillaume Long analisava a mudança. “Ninguém esperava que Moreno fosse idêntico a Correa, nem esperaríamos que obedecesse a Correa ou fosse seu fantoche. Qualquer pessoa eleita legitimamente deveria ter seu próprio programa de governo e isso era o que todos esperávamos. O que desejávamos, em vários sentidos”, explicava. “Mas uma coisa é dizer ‘vou ser meu próprio homem, não uma marionete’, e outra bem diferente é implementar políticas que são exatamente contrárias às que ofereceu às pessoas em sua campanha política. Moreno está implementando o programa e promessas de seu opositor na campanha. Ele até disse diante das câmeras, em tom de brincadeira, que ‘estava meio que odiando’ as pessoas que votaram nele.”

“O presidente Moreno está adotando medidas que são contrárias ao que ele mesmo prometeu na campanha eleitoral. Foi uma surpresa vê-lo adotar uma política neoliberal. Uma série de medidas adotadas pouco tempo depois de chegar ao poder são ilegítimas porque ninguém votou nele para fazer o que está fazendo, e sim o contrário. O governo portanto adotou há meses um caminho enviesado, absolutamente ilegítimo. E agora consideramos que é uma situação contrária aos princípios básicos dos direitos humanos”, aponta Adoración, afirmando que o atual mandatário está “cometendo uma série de agressões aos direitos humanos, empoderando e não controlando a repressão e o uso da força dia após dia por parte das Forças Armadas e da polícia.”

Ela destaca ainda o papel dos meios de comunicação no Equador que, a exemplo de outros países vizinhos onde os grandes veículos estão atrelados ao poder econômico, buscam blindar o governo que defende tais interesses. “Romper o cerco midiático está sendo muito difícil, os meios de comunicação estão associados à estratégia de mentiras, fake news do governo, estão alimentando uma linha argumentativa maluca que pretende atribuir a culpa de tudo isso a uma espécie de conluio entre o ex-presidente (Rafael) Correa e o presidente (Nicolás) Maduro tentando taxar o povo como terrorista ou até falar de uma suposta confabulação golpista envolvendo a Venezuela. Tudo isso é mentira. Não somos golpistas, somos cidadãos lutando por seus direitos.”

Classificar parte dos movimentos e de adversários políticos como “terroristas” vai na linha de interesses estrangeiros como os dos Estados Unidos. “Há tempos a embaixada dos EUA diz que quer reforçar a luta do Equador contra o terrorismo e o medo que temos quando classificam como terroristas as professoras, estudantes, o movimento indígena é que queiram nos aplicar medidas de força com a ajuda dos Estados Unidos”, afirma. “Nesse sentido, queremos chamar a atenção do mundo para o que está ocorrendo, que isto não é um levante porque cortaram o subsídio dos combustíveis, é um levante popular de rejeição às medidas antissociais do Fundo Monetário Internacional, que é o verdadeiro culpado pela pobreza na América Latina. O FMI e seus cúmplices, os EUA e os demais países que estão impulsionando esta série de políticas neoliberais contra a vida no planeta.”

Adoración faz ainda um alerta e um chamado à solidariedade internacional. “Precisamos de toda a solidariedade e estamos muito preocupados com o posicionamento da Organização dos Estados Americanos (OEA) nos avisando que não podemos impedir a continuidade do governo de Moreno. O povo equatoriano é seu soberano legítimo e tem o direito, estabelecido na Constituição, de defender os direitos humanos, a liberdade de expressão, informação e manifestação e o direito legítimo ao protesto, e é o que estamos fazendo. Atualmente temos recebido o apoio de países como o Uruguai e de inúmeras organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional. Realmente, precisamos de toda solidariedade do mundo.”

“A solução, portanto, não passaria apenas pela retirada das medidas, mas sim pela abertura de uma transição para a democracia. É preciso denunciar que agora, no Equador, não há democracia, a Assembleia Nacional não tem sessões e o governo nacional está atuando por decreto, com as Forças Armadas contra o povo. Precisamos de uma missão de verificação internacional que contabilize os feridos, os mortos, as detenções ilegais, as torturas policiais, e necessitamos de ajuda da comunidade internacional para buscar uma saída pacífica que nos abra as portas de um caminho à democracia, que garanta os direitos humanos para todos, que se aplique a justiça àqueles que estão ordenando as ações de força desmedida e que seja garantida a transição ao futuro, sempre pela via pacífica e pela ampliação da democracia”, finaliza Adoración.

Leia também

Últimas notícias