Cultura da morte

Estados Unidos se levantam contra epidemia de massacres: 253 incidentes apenas neste ano

"Isso não pode virar uma tradição do que chamamos a nação mais poderosa do mundo", afirma pai de um jovem assassinado na escola. As famílias esperam alguma reação

creative commons
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"Imbatível!": WallMart faz propaganda e vende armas atrativas a preços baixos para todos os gostos

São Paulo – País mais armado do mundo, os Estados Unidos têm hoje 270 milhões de armas de fogo para uma população aproximada de 327 milhões de pessoas. A facilidade de obtenção destes artefatos possui relação direta com a alarmante epidemia de massacres naquele país. Até a finalização desta reportagem, foram registrados 253 crimes do tipo, com 275 mortes e 1.065 feridos.

No sábado (10), norte-americanos se organizaram para exigir uma mudança na política de armas. O tema é delicado, passa por um imenso lobby de uma indústria bélica bilionária (no último ano, movimentou mais de US$ 41 bilhões) e por um trecho ambíguo da Constituição do país, ratificada em 1791. “Sendo necessária uma milícia bem ordenada para a segurança de um Estado livre, o direito do povo a possuir e portar armas não poderá ser violado”, afirma a segunda emenda do texto.

O instrumento – articulado pelos federalistas norte-americanos – traz duas interpretações. A primeira, apoiada por forças políticas imensas como a National Rifle Association (NRA), e também pela Suprema Corte, é de que todo cidadão possui de fato tal direito. Em dados oficiais, a NRA gasta mais de US$ 3 milhões com lobby pró armas por ano, sem contar apoio a políticos alinhados e campanhas publicitárias. Os opositores enxergam a emenda como garantia da independência dos estados de, eventualmente, se levantarem contra uma Federação autoritária, com a formação de milícias para a defesa da população.

NRA e WallMart patrocinam políticos armamentistas

Do lado dos pacifistas está o fato concreto: massacres estão cada vez mais comuns (mais de um por dia do ano na média). A ascensão da extrema-direita do republicano Donald Trump fez explodir o número de vendas de armas. A violência do discurso que acompanha tal orientação política é encontrada quase de forma uníssona entre os assassinos. Xenofobia, machismo, misoginia e racismo estão entre as principais razões para a ação desses atiradores.

No último fim de semana, foram três. O primeiro, no sábado (3), matou três pessoas e feriu 15 em um festival de música na cidade de Gilroy, Califórnia. No domingo, nove foram mortos e 27 feridos em Dayton, Ohio. O mais trágico deles aconteceu no sábado, na pacífica cidade de El Paso, no Texas. Em uma cidade de maioria hispânica, que se orgulha dos baixos índices de criminalidade, 22 foram mortos e mais 26 baleados na frente de um WallMart. Os atiradores, dois jovens brancos. Um deles disse em um fórum na internet que ia agir contra uma “invasão hispânica”. O outro afirmava odiar mulheres e que tinha feito uma “lista negra” no ensino médio. Ambos militavam em favor de Trump em redes sociais.

No varejo

No combate ao lobby conservador, econômico e armamentista, está boa parte da sociedade civil norte-americana. Uma das principais publicações dos EUA, a revista Time entrou abertamente no debate, lançando nas bancas capas e textos favoráveis à maior restrição do porte de armas. O editor-chefe e CEO da revista, Edward Felsenthal, disse, em editorial desta semana, que o “terror doméstico se tornou obscenamente normal”.

“Cresci em uma família de donos de armas que sempre foram responsáveis. Mas não deveria ser tão fácil possuir e usar uma arma assim como se usa um carro. Por que produtores de armas são blindados de leis que incentivam produtores de qualquer outro produto na América a pensar em segurança?, disse. “Segurança que celulares e carros possuem, ao menos, devem ser aplicados às armas”, completou. A obtenção de armas de fogo no país é obscenamente facilitada. O processo de entrar em um WallMart e comprar uma pistola .380 é similar ao de comprar um pacote de arroz de 5 quilos.

WallMart que viu, em suas dependências, o último maior massacre, o de El Paso. Justamente ela que recebeu manifestantes ontem pedindo maior que a gigante do varejo interrompa a venda de armas.

A WallMart tomou uma atitude contraditória: pediu a retirada de anúncios de jogos violentos, bem como alguns exemplares. Eles se escoram em uma noção altamente rebatida por profissionais de diferentes áreas de que jogos violentos fomentariam a violência. Mas armas que, de fato, só servem para matar, não. Estas continuam nas prateleiras, com cores chamativas e modelos que vão de grandes revólveres de alto calibre até versões pequenas e refinadas para caber em uma bolsa de festas elegantes de cidadãs da elite norte-americana.

Fred Guttemberg, que teve sua filha assassinada no incidente da escola de Parkland, Flórida, em fevereiro de 2018, criticou a atitude da loja. “Minha filha não morreu por conta dos videogames. Ela morreu porque armas e munições estão disponíveis no varejo no WallMart. Parem de se esconder da realidade de seus papeis na violência por armas de fogo”, disse via redes sociais.

“BASTA”, afirma a revista Time

O levante #WallMartMustAct

O ex-presidente democrata dos Estados Unidos Barack Obama tentou emplacar regras mais rígidas para a obtenção de armas no país. Seu projeto não prosperou após oposição ferrenha dos republicanos. Agora no poder, com Trump, o cenário de maior regulação fica mais distante, embora o próprio presidente-empresário não tenha descartado discutir o tema ao longo de seu mandato. Existe uma pressão que a realidade impõe sobre o tema.

Manuel Oliver é estadunidense, de família de imigrantes. Hoje, é um grande ativista do controle de armas no país. Infelizmente, seu envolvimento tem raízes trágicas. Seu filho, Joaquim Oliver, foi um dos 17 jovens assassinados em Parkland. Por triste coincidência, o pai estava em El Paso no dia do último incidente, justamente em uma homenagem a seu filho em um cento de imigrantes.

“Muitos de nossos amigos e pessoas que sabem o que fazemos ficaram preocupados quando ficaram sabendo do atirador de El Paso, quando souberam o que estávamos fazendo em El Paso. Ligaram para Patrícia (esposa) e todos perguntaram se ela estava bem. Depois disso, apenas, ficamos sabendo do tiroteio. Então fomos para lá ver o que poderíamos fazer. Novamente, tivemos de presenciar um caso desses bem próximo de nós”, disse Manuel, em entrevista ao Democracy Now.

Em El Paso, Manuel leu um texto que Joaquim escreveu pouco antes de sua morte. “Eu quero perguntar para todos os meus verdadeiros amigos que apoiaram Donald Trump se eles poderiam viver sem mim. Se eu desaparecer hoje, isso faria vocês felizes? Vocês estariam bem com isso? Não só eu, mas qualquer um que vem sendo discriminado pelo seu presidente. Vocês estariam 100% ok se seus amigos imigrantes nunca tivessem existido na vida de vocês? Aqueles que escolheram se abster sobre isso estão mal também. Se você se calou, você o apoiou. Então, lute por nós e lutaremos por vocês. Nos ame e nós amaremos vocês.”

Hoje, Manuel ajudou a convocar cidadãos que temem por suas vidas a se manifestar nas portas dos WallMarts de suas cidades. “Isso não pode virar uma tradição do que chamamos a nação mais poderosa do mundo. Muitas estão se sentindo muito mal hoje. Elas não esperam dos cidadãos norte-americanos pensamentos e orações. Claro, acredito que ninguém mais faz isso. Mas elas esperam que alguém tenha alguma reação.”

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