Omissão

Como a lógica do mercado ajuda a explicar a epidemia de ebola no Congo

Doença está entre aquelas classificadas como "negligenciadas". Para Carolina Batista, do Médicos Sem Fronteiras (MSF), é preciso "investir com base na necessidade de saúde pública e não na potencialidade de lucro"

Pablo Garrigos/MSF
Pablo Garrigos/MSF

São Paulo – Na última quarta-feira (19), a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a epidemia de ebola na República Democrática do Congo (RDC) uma “emergência de saúde pública de interesse internacional”. Tal definição significa, segundo o órgão, que se trata de uma situação “séria, repentina, incomum ou inesperada” e que pode trazer “implicações para a saúde pública além da fronteira nacional do Estado afetado”, além de requerer ação internacional imediata.

Até o momento em que foi feita a declaração da OMS, eram mais de mais de 2.500 casos de infecção, com aproximadamente 1.670 mortes nas províncias de Ituri e Kivu do Norte, configurando-se o segundo pior surto da doença na história. A confirmação do primeiro caso em Goma, cidade de 2 milhões de habitantes localizada na fronteira com Ruanda, foi um dos fatores determinantes para a mudança de patamar.

“A declaração da OMS vem como uma resposta, primeiro, a um aumento muito grande, em curto período de tempo, no número de casos. E porque também já foram identificados casos em países fronteiriços como Uganda e há riscos muito concretos da doença se espalhar também para Ruanda”, explica a médica Carolina Batista, integrante do Conselho Internacional da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF). Três pessoas morreram por conta do surto em Uganda, no mês de junho, e na quinta-feira a OMS divulgou que uma congolesa pode ter levado a doença a Ruanda, que nunca teve um caso registrado de ebola até hoje.

A República Democrática do Congo vive hoje a segunda pior crise de fome do mundo, atrás somente do Iêmen, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo a agência do órgão para refugiados (Acnur), os confrontos armados no país levaram 300 mil pessoas a se deslocarem internamente somente no mês de junho.

“O Congo é um país extremamente complexo, que há décadas vem sofrendo consequências do dia a dia de um conflito armado entre grupos diversos, um quadro cronificado de guerra. E é um país enorme, o acesso geográfico às zonas rurais é extremamente dificultado, com ocorrência de muitas doenças tropicais e infecciosas graves como, por exemplo, doença do sono, malária, ainda se morre de doenças que nós aqui só vemos nos livros”, explica Carolina.

A médica também atenta para outro aspecto que ajuda a explicar o surto no país. O ebola faz parte do grupos das chamadas “doenças negligenciadas” e por conta disso não recebe a devida atenção de pesquisadores e da indústria farmacêutica. “A comunidade internacional não deve esperar a chegada de uma nova epidemia para começar a discutir e investir em ferramentas para combater essa epidemia e sim investir com base na necessidade de saúde pública e não na potencialidade de lucro”, aponta.

Dados noticiados pela Fiocruz mostram que as doenças tropicais e a tuberculose respondem por 11,4% da carga de doenças no mundo, mas apenas 21 (1,3%) dos 1.556 novos medicamentos registrados entre 1975 e 2004, foram desenvolvidos especificamente para elas.

Confira abaixo alguns trechos da conversa com a médica do MSF.

Emergência internacional

A declaração da OMS vem como uma resposta, primeiro, a um aumento muito grande, em curto período de tempo, no número de casos. E porque também já foram identificados casos em países fronteiriços como Uganda e há riscos muito concretos da doença se espalhar também para Ruanda. A epidemia teve início em agosto de 2018 e nos primeiros meses até março deste ano tivemos mais de mil casos confirmados, sendo que somente de março até agora foram novamente mais de mil.

Este aumento, com a expansão geográfica da doença, fez com que a Organização Mundial de Saúde fizesse esta declaração que nada mais é do que um chamado para que os diferentes atores internacionais, as entidades, os ministérios da Saúde possam de maneira coordenada responder a essa epidemia que vem aumentando e não respeita fronteiras.

Organizações como o Médicos Sem Fronteiras vêm trabalhando com o ebola há muito tempo, mas é uma doença que se provou, quando se olha para trás – como na epidemia de 2014 que atingiu Guiné e Serra Leoa – que ela não pode ser vencida por um só ator. Essa declaração oficial chama a comunidade internacional para unir forças e possa haver uma maior chance de conter essa epidemia.

As principais dificuldades para combater o surto de ebola

O Congo é um país extremamente complexo, que há décadas vem sofrendo consequências do dia a dia de um conflito armado entre grupos diversos, um quadro cronificado de guerra. E é um país enorme, o acesso geográfico às zonas rurais é extremamente dificultado, com ocorrência de muitas doenças tropicais e infecciosas graves como, por exemplo, doença do sono, malária, ainda se morre de doenças que nós aqui só vemos nos livros. E o sistema de saúde não só é sobrecarregado, mas também muito enfraquecido.

Todos esses ingredientes fazem com que seja muito difícil atuar quando ocorre uma epidemia como a do ebola, que requer esforços muito concertados. Por exemplo, nos últimos meses, o Médicos Sem Fronteiras teve que retirar parte de sua equipe dos centros de saúde da região do norte do Kivu por conta de ataques de grupos rebeldes a esses centros.

Doenças negligenciadas

As doenças tropicais negligenciadas são uma classificação da própria Organização Mundial de Saúde, incluindo Doença de Chagas, que nós brasileiros conhecemos bem, leishmaniose, hanseníase, ebola, dengue, e muitas outras doenças que têm como ponto em comum afetar em sua maioria pessoas que vivem em países pobres ou em áreas de exclusão, rurais, e que não têm acesso a serviços de saúde, em geral mais empobrecidas e vulneráveis.

Então, claro que essas doenças, se formos pensar em um lógica puramente de mercado e de lucro, não vão ter investimentos em medicamentos e vacinas. No entanto, o que se vê hoje é que essas doenças também começam a se expandir geograficamente, cobrirem áreas do mundo que antes não afetavam, pessoas de outras classes. O advento do zika e da dengue, doenças que vêm crescendo em número e em países afetados, faz com que se repense certos conceitos: porque essas doenças, séculos, depois, ainda permanecem sem investimento adequado?

E se formos pensar no ebola, existia essa vacina experimental há muitos anos, foi desenvolvida por um laboratório público do Canadá e tinha sido deixada de lado porque não havia muito interesse, eram poucas pessoas pessoas em países africanos contaminadas e não representava algo que se poderia dizer “apetitoso” do ponto de vista do mercado. Até que em 2014, com uma epidemia de enorme gravidade e repercussão midiática, se começou a buscar o que havia disponível e viram que no início dos anos 2000 havia essa vacina já em fase avançada de desenvolvimento e que não havia sido levada adiante porque não existia o interesse. Hoje, essa vacina que usamos na República Democrática do Congo e que deverá ser usada em Ruanda e no Congo, países vizinhos onde a OMS já vem trabalhando com atores locais, vai ser utilizada além de outra já avançada e em fase experimental.

Pela saúde pública

A comunidade internacional não deve esperar a chegada de uma nova epidemia para começar a discutir e investir em ferramentas para combater essa epidemia e sim investir com base na necessidade de saúde pública e não na potencialidade de lucro.

É preciso trabalhar de maneira concertada com as comunidades afetadas, colocar essas pessoas no centro, para que a gente não chegue com uma abordagem que vem de cima para baixo, mas construída com eles.

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