Crise na fronteira

‘Venezuela é país soberano e tem direito de proteger suas fronteiras’, diz Igor Fuser

'É algo perigoso o que acontece na fronteira entre Brasil e Venezuela, que vai contra as tradições da diplomacia brasileira', diz professor. Para porta-voz brasileiro, país vizinho é 'capitaneado' por Guaidó

Reprodução/Youtube

“As provocações precisam ser trabalhadas com tempo para serem desmontadas”, disse Maduro

São Paulo – O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, emitiu hoje (21) ordem de fechar a fronteira do Brasil com a Venezuela. O fechamento está previsto para ser concretizado a partir das  20h (21h no horário de Brasília). “Fica fechada, total e absolutamente, até novo aviso, a fronteira terrestre com o Brasil. Mais vale prevenir do que lamentar. As provocações precisam ser trabalhadas com tempo para serem desmontadas”, disse Maduro, ao anunciar a medida.

Em pronunciamento no início da noite, o porta-voz da presidência da República do Brasil, general Rêgo Barros, disse à imprensa que a operação na fronteira com o país vizinho “é de normalidade”. Esta semana, o governo brasileiro de Jair Bolsonaro aderiu à força-tarefa liderada pelos Estados Unidos” para a entrega de suposta ajuda humanitária à Venezuela. “O intuito do Estado brasileiro é de acolher os irmãos venezuelanos em ações humanitárias”, disse o porta-voz.

Porém, Rêgo Barros deixou clara a posição do governo brasileiro de que, para ele, quem comanda a Venezuela é o deputado Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente venezuelano. Segundo o porta-voz do governo brasileiro, um avião da Força Aérea se encaminha para o país vizinho com material para a “ajuda humanitária” e a chegada desse material será recebida, dia 23, “pelos irmãos venezuelanos capitaneados pelo presidente (Juan) Guaidó”.

Na opinião de Igor Fuser, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), o comportamento do governo brasileiro é injustificável.

“É importante falar do caráter descabido do governo brasileiro fornecer um pedaço de seu território como plataforma para uma ação beligerante contra a Venezuela promovida pelos Estados Unidos”, diz. “Os Estados Unidos usam um pretexto humanitário falso e hipócrita para construir a ponta de lança de uma intervenção militar contra o governo de Nicolás Maduro.”

Fuser falou à RBA.

Como vê a crise que redunda na medida anunciada por Maduro? 

A Venezuela, como país soberano, tem direito e dever de proteger suas fronteiras. Qualquer iniciativa da Venezuela no contexto tem o caráter defensivo e preventivo. Não pode em nenhuma hipótese ser encarada como atitude hostil. O país sofre o risco de uma violação de seu território, de suas fronteiras, a partir de uma iniciativa dos Estados Unidos que usam um pretexto humanitário falso e hipócrita para construir a ponta de lança de uma intervenção militar contra o governo de Nicolás Maduro.

A Venezuela tem um governo de direito e de fato. Apesar disso, o governo brasileiro de Bolsonaro, seguindo os passos dos Estados Unidos, passou a não reconhecê-lo, rompeu relações com o governo efetivo de Maduro para reconhecer um usurpador, Juan Guaidó, que não tem nenhum requisito para ser considerado presidente da Venezuela. O suposto ato legislativo que o institui como presidente é falso, não tem o mínimo respaldo nas leis.

E o Brasil nesse processo?

É importante dizer do caráter descabido do governo brasileiro em fornecer um pedaço de seu território como plataforma para uma ação beligerante contra a Venezuela promovida pelos Estados Unidos. A Venezuela não representa e nunca representou nenhuma ameaça ao Brasil, historicamente e no período recente tem tido uma postura impecável em relação ao Brasil, e não afetou nenhum interesse brasileiro. Fornece energia elétrica que abastece a baixo custo o estado de Roraima.

Ao fazer isso, o Brasil entrou numa rota irresponsável e aventureira. É algo extremamente perigoso o que está acontecendo na fronteira entre Brasil e Venezuela, algo que vai contra as tradições da diplomacia brasileira, que adota há muitas décadas, ao longo de sucessivos governos, o princípio da não ingerência em assuntos internos de outros países. O governo brasileiro também adota há décadas a busca da solução pacífica dos conflitos. Ao se envolver nessa provocação militar ao governo da Venezuela, faz o contrário disso, reforçando os riscos de uma guerra na fronteira norte brasileira, uma guerra civil na Venezuela. O Brasil tem historicamente uma política de defesa da América do Sul como zona de paz.

RBA
Brasil contraria sua tradição diplomática no caso Venezuela

Independentemente de governos…

Independentemente de governos. Governos mais à direita, mais à esquerda. Inclusive, o regime militar brasileiro sempre respeitou esses princípios, que remontam à época do Barão do Rio Branco, fundador da diplomacia brasileira contemporânea, mais de 100 anos atrás.

Tudo isso está sendo jogado no lixo por um governo irresponsável. Do ponto de vista venezuelano, eles estão no pleno direito de defender e fechar suas fronteiras.

Como explicar o processo ter chegado a esse ponto?

A Venezuela está sofrendo uma chantagem internacional a partir dos Estados Unidos, que estão aplicando sanções ilegais, no sentido de agravar as dificuldades da Venezuela, dificultando e em alguns casos impedindo o acesso do país a bens de primeira necessidade, alimentos e remédios. Isso mostra a grande hipocrisia do discurso da ajuda humanitária. Os problemas de abastecimento que a Venezuela está sofrendo hoje são causados justamente pelos Estados Unidos.

Ajuda humanitária é feita de comum acordo com o receptor e de acordo com protocolos internacionais e por meio de organizações idôneas, como Cruz Vermelha Internacional, Médicos sem Fronteiras, Cáritas, Oxfam, e várias outras. Nenhuma dessas entidades internacionalmente reconhecidas está apoiando essa provocação.

O que está em jogo é uma chantagem dos Estados Unidos: ou o governo da Venezuela se dobra às pressões, renunciando ao governo eleito, ou então o sofrimento e a dor da população venezuelana e a crise econômica só vão se agravar.

Existe risco de guerra?

Claro que existe, é um risco cada dia mais alto. Se houver uma guerra o culpado – está claro – será o governo dos Estados Unidos, que não tem nada a ver com o que acontece na política interna da Venezuela. E também culpados serão os países vizinhos que ajudarem os Estados Unidos nesse plano de guerra, caso da Colômbia e também, infelizmente, caso do Brasil.

O governo dos Estados Unidos não têm o direito de impor sua vontade a um país soberano. São eles que estão cercando a Venezuela com tropas militares, que aplicam sanções econômicas e ameaçando o uso da força militar para tentar romper o controle do governo venezuelano sobre suas fronteiras.

Jovens brasileiros reservistas têm motivo para temer serem convocados a participar de uma guerra?

Há motivos para que a sociedade brasileira se preocupe intensamente com o que está acontecendo na fronteira com a Venezuela. O Brasil está se envolvendo em provocações militares contra a Venezuela, que suscitam respostas também no plano militar, o que pode envolver o Brasil numa espiral de conflito que resulte realmente numa guerra internacional. Não podemos descartar esta possibilidade. Se isso acontecer seria um crime que o governo brasileiro estará cometendo contra o povo brasileiro. Não existe nenhum interesse nacional legítimo que justifique qualquer ação militar do Brasil contra a Venezuela.

Nem econômico, nem político…

Nem econômico, nem político, nem moral, nem absolutamente nada. Nenhum interesse brasileiro está sendo ameaçado pela Venezuela. Nossa soberania está preservada e não corresponde ao interesse brasileiro apoiar qualquer provocação política e militar armada pelos Estados Unidos.

Como avalia a visão de parcela da própria esquerda brasileira de que o governo Maduro não é democrático, por exemplo, ao prender opositores?

O governo da Venezuela se enquadra em todos os critérios universalmente aceitos, inclusive pela ciência política, para definir um governo como democrático. É um governo eleito em eleições livres, limpas, competitivas, com a participação da oposição. O presidente Maduro foi eleito. Uma parte da oposição participou da eleição, e foi derrotada. Outra parte boicotou as eleições porque quis. Não havia motivo legítimo para que as eleições fossem boicotadas. Com o boicote, evidentemente as chances de vitória de Maduro aumentaram e ele ganhou por larga margem com grande número de abstenções, mas em muitos países do mundo considerados democráticos a margem de abstenção é ainda maior do que a verificada na Venezuela no ano passado.

A imprensa venezuelana é livre, vide os jornais de oposição que atacam o governo diariamente; há redes de TV aberta que fazem oposição declarada, os partidos de oposição agem livremente, há grandes manifestações de protesto toda semana praticamente, em Caracas e outras cidades, propondo a derrubada do governo Maduro, e essas manifestações não são reprimidas, se desenvolvem pacificamente, e o direito de expressão é respeitado pelas autoridades do país. Qual é a base para se dizer que a Venezuela não é um país democrático?

No final de janeiro, o Parlamento Europeu reconheceu Juan Guaidó como presidente interino. Por que?

A União Europeia, infelizmente, vai a reboque dos EUA em muitas questões de politica internacional, inclusive no que se refere à América Latina. Foi levada a reconhecer o usurpador Guaidó, desconhecendo o governo legitimo de Maduro. No entanto, a diplomacia da União Europeia tem se distanciado da política belicosa de Trump, deixando claro que não apoiará o uso da força militar contra a Venezuela.