Novo velho mundo

Quem são os ‘coletes amarelos’ da França e o que virá depois deles

É provável que a raiva expressa pela população francesa não seja mais do que um sintoma visível da iminente crise ecológica e social global que se avizinha

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Macron está muito distante da realidade do francês comum para entender a raiva que as ruas expressam

São Paulo – Quem são exatamente os coletes amarelos? Qual a razão de sua irrupção e a violência desproporcional que toma conta de grande parte do país? A imprensa internacional mais uma vez coloca o foco na França, um dos países mais estereotipados do mundo.

As dúvidas são inúmeras, mas há várias coisas evidentes: o movimento dos coletes amarelos nasceu após a decisão do governo de aumentar os impostos sobre o combustível (não apenas diesel), é caracterizado por ser heterogêneo, não-partidário, líquido, auto-organizado e imprevisível, sendo percebido com simpatia por mais de 70% da população, de acordo com as últimas pesquisas. A maioria de seus integrantes é composta de pessoas brancas, de meia-idade, de áreas periféricas e rurais.

Os gilets jaunes ou coletes amarelos conseguiram até mesmo cortar os Champs Élysées e tomar o Arco do Triunfo. Esta ação tem uma carga simbólica importante: Napoleão, o grande líder da França pós-revolucionária, tinha concebido amplas e grandes vias para, entre outras coisas, dificultar que os protestos bloqueassem o trânsito da capital francesa. A revolução e seus legados parecem cada vez mais obsoletos. O que há de transgressor nesse novo movimento?

O surgimento de coletes amarelos está gerando amplos debates sobre sua orientação ideológica (Le Pen e Mélenchon são os dois favoritos nesse movimento, com o apoio de 40% e 20% dos coletes amarelos, respectivamente, segundo o centro de pesquisas Elabe), o papel das redes sociais e das fake news na propagação da raiva, e a liderança à base da improvisação de Macron.

Rafael Poch, cronista privilegiado e de olhar aguçado, descarta uma possível insurreição francesa porque os banlieues ou periferias empobrecidas e conflitantes de origem migrante estão ausentes. No entanto, há uma discussão subjacente que também ganha força e é pelo menos interessante: a França parece estar vivendo o preâmbulo de uma luta que combina a justiça social e a luta contra a mudança climática, um fenômeno que pode se espalhar rapidamente para outros países, incluindo a Espanha. Vamos por partes.

A raiz da questão

Macron decidiu elevar o preço do combustível e essa foi a gota d’água que transbordou o copo que já estava cheio: quem arcaria com a conta eram os de sempre, os que mais sofriam com cortes sociais, com serviços públicos precários; a redução de impostos para as grandes fortunas (uma das as primeiras decisões do presidente ao chegar ao Élysée), a precarização do trabalho, aumentando a desigualdade no país da egalité.

Mas, para entender o transbordamento do copo, é preciso olhar para trás: hoje se colhe a raiva semeada pela desindustrialização da França nas décadas anteriores, pela centralização do Estado (Paris, Paris, Paris), pela precarização do emprego e pelo abandono vivido pelo mundo rural e pelas áreas periféricas, grandes vítimas da realocação de fábricas e das políticas implementadas a partir de Paris (Christophe Guilluy faz uma análise com precisão cirúrgica em A França periférica).

O geógrafo Roger Brunet fala sobre a “diagonal do vácuo” para se referir à faixa que vai do nordeste ao sudoeste, um território em processo de despovoamento e com as mais altas taxas de desemprego da França. É aí que o movimento dos coletes amarelos explodiu e se tornou forte. Por quê? Porque os fatores que encheram e transbordaram o copo ressoam com mais força ali.

Em áreas rurais, com cidades pequenas e médias, o carro é praticamente imprescindível para ir ao supermercado ou à estação de trem mais próxima. A extrema violência da polícia, habitual nos ambientes urbanos, mas não tanto fora deles, reforçou a indignação dos coletes amarelos. Os confrontos com autoridades e outros cidadãos já causaram seis mortes, mais do que no recente atentado de Estrasburgo.

Esse é o cerne da questão: é imperativo combater as mudanças climáticas e, portanto, é essencial aumentar o preço dos combustíveis e concebê-los como um combustível do passado, independentemente de quem possa ser. Mas quando essa responsabilidade recai apenas sobre uma parte da sociedade – a mesma que sofre austeridade, cortes e precarização – há grandes atritos, os cidadãos perdem a confiança em seus representantes e os partidos ultra-direitistas engordam.

Macron chegou a ser a personificação da esperança na Europa, mas sua gestão dessa crise mostra que ele não entendeu o desafio. A violência policial, que resultou em milhares de prisões e pessoas feridas (incluindo jornalistas), não fez nada além de agitar uma panela de pressão que pede válvulas de escape, não pancadas.

Uma das imagens que essas manifestações deixa para a posteridade é a de alunos do ensino médio ajoelhados e vigiados pela polícia (foram 151 alunos presos, segundo a mídia francesa). Que paradoxal a cena ter ocorrido em Mantes-la-Jolie, periferia da periferia de Paris, exemplo de uma área deprimida e despovoada da França em que as fachadas ainda refletem traços de um passado próspero de fábricas abertas e bares lotados.

Ponto de inflexão

Macron improvisa. Está muito distante da realidade do francês comum para entender a raiva que as ruas expressam. Em primeiro lugar, recuou em relação ao aumento do preço dos combustíveis (estimava-se uma arrecadação extra de € 33 bilhões, dos quais apenas € 7 bilhões seriam revertidos em assuntos sociais). Depois, vendo que a violência não parou, apareceu na televisão – 23 milhões de telespectadores – para anunciar quatro medidas: conceder um extra de € 100 para aqueles ganham salário mínimo (nota demagógica: Macron gastava mais de € 8.000 por mês com um maquiador pessoal), cancelar o aumento das contribuições para aposentadorias mais baixas e eliminar os impostos por horas extras e bônus que os empregadores dão voluntariamente ao seu pessoal.

Duas destas medidas são armadilhas (estão sujeitas à vontade do empregador), enquanto a ajuda suplementar ao salário mínimo parece mais uma decisão marqueteira: dos quase 70 milhões de habitantes que a França tem, apenas 1,8 milhão recebe a remuneração mínima e, em todo caso, já estava previsto um aumento de € 30.

Para piorar, tudo isso aumentará os gastos públicos. Macron pode pagar porque, ao contrário da Itália, Bruxelas não pode erguer sua voz para a França caso descumpra a meta do déficit (é o país europeu que mais falha em atingir esse objetivo, 11 vezes desde 1999). Resumindo: respostas de curto prazo e superficiais do governo e da sociedade a problemas que afetam o âmago da nação e o grande desafio do século 21.

É provável que a raiva expressa pela população francesa não seja mais do que um sintoma visível da iminente crise ecológica e social global que se avizinha. É também um reflexo do individualismo que nos move: nem a crise dos refugiados nem o tratamento favorável da França em relação a regimes autoritários ou a sua intervenção em guerras distantes produziram níveis de indignação como aqueles que agora são vistos em uma medida que afeta diretamente o bolso dos cidadãos. Mas também há espaço para otimismo.

Por um lado, os coletes amarelos revelam que existe vida além dos sindicatos e partidos. Por outro lado, é a primeira vez que na Cúpula do Clima realizada na Polônia (a chamada COP24), os representantes do governo fazem referências constantes aos coletes amarelos e à necessidade de acordar uma transição ecológica justa para os trabalhadores.

O deputado espanhol de origem francesa Florent Marcellesi diz que esta é uma oportunidade para construir uma transição, mas isso “só pode ser justo se não deixar ninguém para trás”. A última pesquisa da Ipsos divulgada antes do encerramento desta edição também mostra um raio de esperança: os verdes aumentam de 9% para 14% na intenção de voto entre os franceses antes das eleições europeias.

Texto original no La Marea aqui. Tradução e edição: Glauco Faria

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