em Davos

Para analistas, discurso de Bolsonaro é falacioso. ‘Dá medo’, diz Nobel de Economia

Presidente disse que seu governo promoverá política externa 'sem viés ideológico'– ao contrário do que faz –, acena para o mercado e diz que montou uma equipe de 'ministros qualificados'

Alan Santos/PR

“Gozamos de credibilidade para fazer as reformas de que precisamos e que o mundo espera de nós”

São Paulo – O presidente Jair Bolsonaro fez um discurso de seis minutos e meio na abertura do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. Afirmou, sobre seu próprio governo, que “pela primeira vez no Brasil um presidente montou uma equipe de ministros qualificados”. Declarou que as relações internacionais brasileiras “serão dinamizadas pelo ministro Ernesto Araújo, implementando uma política na qual o viés ideológico deixará de existir”. Disse ainda: “Gozamos de credibilidade para fazer as reformas de que precisamos e que o mundo espera de nós”, num aceno aos investidores internacionais.

As avaliações de analistas, jornalistas e lideranças no Brasil e no mundo são bem diferentes. Para Miriam Gomes Saraiva, pesquisadora do departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a afirmação de que  Ernesto Araújo fará uma política sem viés ideológico “é falaciosa”. “Política externa ideológica é aquela que não objetiva ganhos tangíveis, mas segue crenças, preferências políticas e religiões”, diz 

“Dentro desse critério, é obvio que a política externa dele é que é extremamente ideológica. A política externa pragmática é aquela que, independentemente de simpatias ou antipatias em relação ao parceiro, busca ganhos tangíveis”.

Quanto à avaliação de Bolsonaro de que seu governo, pela primeira vez, “montou uma equipe de ministros qualificados”, o sociólogo Cândido Grzybowski, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), também tem uma visão oposta. “Não sei quais são os indicadores de credibilidade que ele acha que tem. Na imprensa mundial, ele é visto com espanto. Acho que é uma imaginação dele”, diz.

“Dos 22 ministros, 10 já têm problemas com a Justiça. Sem contar que ele, seu filho e família estão no fogo direto“, acrescenta. Na sua opinião, a não ser Paulo Guedes (Economia) e alguns militares, “os ministros dele não têm nada de qualificados”. “Divirjo dos militares e de Guedes, mas são um lado um pouco mais qualificado. E o ministro da Educação? Essa coisa de ideologia de gênero, escola sem partido? Isso não é só de direita, é falta de conhecimento. Peguemos a emblemática Damares (Alves), ou o ministro das relações exteriores (Ernesto Araújo).”

Para o sociólogo, as repercussões entre jornalistas e pessoas “sérias” no exterior vão ser de gozação sobre o que Bolsonaro diz. Em Davos, o prêmio Nobel de Economia em 2013, Robert Shiller, manifestou mais do que isso. “Ele (Bolsonaro) me dá medo. O Brasil é um grande país e merece algo melhor.”

Para a professora da Uerj, no mundo contemporâneo até mesmo os membros do status quo capitalista evoluíram para uma compreensão maior das relações econômicas e do planeta. “Hoje em dia o mundo empresarial é muito mais ágil.  Desrespeito ao meio ambiente, tirar as terras indígenas, tudo isso pega muito mal”.

A avaliação de Grzybowski é a mesma. “Até eles começam a se preocupar. O megainvestidor George Soros já disse que o mundo não pode continuar assim. Seu discurso no ano passado foi uma das vozes mais ponderadas desse outro lado. The Economist o considerou o personagem do ano”, lembra. “O criador do fórum de Davos (o alemão) Klaus Schwab, afirmou que está na hora de criarmos um novo pacto, porque senão caminharemos para a barbárie. O que Bolsonaro está propondo, como Trump, é o caminho para a barbárie. É um viés ideológico, e dos piores possíveis.”

Nas redes sociais, o ex-candidato à Presidência da República Guilherme Boulos (Psol) disse que “Bolsonaro falando em Davos lembra aquele aluno que vai pra prova sem estudar e responde todas as perguntas com a mesma resposta”.

Para o senador Humberto Costa (PT-PE), o discurso de Bolsonaro em Davos “dá a exata dimensão da sua figura: pequena, acuada e medíocre”. Ele acrescentou: “Que seu governo seja breve como sua fala”.

A deputada federal reeleita Jandira Feghali (PCdoB) usou de ironia: “Enquanto o presidente faz seu marketing no bandejão de Davos, o Brasil percebe cada vez mais a burrada em que se meteu”.

Como foi com Lula

Em 26 de fevereiro de 2003, em sua primeira aparição no fórum de Davos como recém-eleito, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou do combate à fome no início de seu governo e exortou líderes mundiais a trabalhar pela inclusão e pela paz. Lula falou por 28 minutos, dias depois de ter participado do Fórum Social Mundial, evento paralelo ao Fórum de Davos, que discute saídas para as injustiças do capitalismo global.

“A face mais visível das disparidades são os mais de 45 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza.” Ele continuou: “Todo o esforço que estamos fazendo para recuperar, responsavelmente, a economia brasileira, não atingirá plenamente seus objetivos sem mudanças importantes na ordem econômica mundial (…) Aqui em Davos convencionou-se dizer que hoje existe um único deus: o mercado. Mas a liberdade de mercado pressupõe, antes de tudo, a liberdade e a segurança dos cidadãos.”

Em um dos trechos mais enfáticos, o ex-presidente disse: “nossa política externa está firmemente orientada pela busca da paz, da solução negociada dos conflitos internacionais e pela defesa intransigente dos nossos interesses nacionais. A paz não é só um objetivo moral. É, também, um imperativo de racionalidade. Por isso, defendemos que as controvérsias sejam solucionadas por vias pacíficas e sob a égide das Nações Unidas. É necessário admitir que, muitas vezes, a pobreza, a fome e a miséria são o caldo de cultura onde se desenvolvem o fanatismo e a intolerância”.

 

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