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Sonho de política externa de Bolsonaro esbarra na realidade

Antes de tomar posse, futuro governo já criou problemas com árabes, China, Mercosul e acabou com o Mais Médicos. A ideia de um Itamaraty ideológico provoca reações externas e terá graves custos

Tânia Rêgo/Agência Brasil

Exportações brasileiras podem ser as primeiras “vítimas” de uma política externa ideológica

São Paulo – As declarações sobre política externa por parte do próprio presidente eleito, Jair Bolsonaro, de ministros, membros do futuro governo e seu “braço direito”, Paulo Guedes, têm causado sobressaltos não apenas nos meios diplomáticos, mas também entre os agentes econômicos cuja atuação depende de boas relações internacionais com parceiros importantes para a balança comercial brasileira. Além das declarações polêmicas e anti-diplomáticas, as incertezas aumentam ainda mais com as idas e vindas.

O mais recente recuo partiu do vice-presidente eleito, o general da reserva Hamilton Mourão, que, em entrevista à colunista Mônica Bergamo, colocou panos quentes em questões relacionadas à China, Venezuela e outros temas, chegando a falar em pragmatismo. Ele relativizou as relações com os Estados Unidos e afirmou que “não podemos nos descuidar do relacionamento com a China”, entre outras avaliações.

A mais recente fala sobre o Mercosul, outro tema que tem preocupado meios diplomáticos e econômicos, partiu da futura ministra da Agricultura, Tereza Cristina, defendendo esta semana a revisão dos fundamentos do bloco sul-americano.

O fim da parceria entre Cuba e o Brasil que trouxe o programa Mais Médicos é o exemplo mais concreto, até agora, do que pode vir a ser a política externa de Bolsonaro. Para a pesquisadora Miriam Gomes Saraiva, do departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), as declarações de Bolsonaro (e seus auxiliares) depois de eleito, apontando para uma política externa ideológica, de aproximação com os EUA e distanciamento de países identificados como de esquerda, tendem a sofrer um “choque de realidade” ao longo do tempo.

Em sua opinião, com os posicionamentos radicais e contrários à tradição da diplomacia brasileira, Bolsonaro “manifestou o que seria a política externa do sonho dele”. Porém, esse sonho enfrenta dois grandes obstáculos. 

“Todas essas declarações causaram polêmicas, sobretudo no caso de Israel (a mudança da embaixada do Brasil para Jerusalém, o que causou reação dos países árabes). Mas uma coisa é a ideologia conservadora e de extrema-direita de Bolsonaro, outra coisa é o que vai acontecer com ele e com qualquer presidente que persegue esse caminho”, avalia. “Quando começa o exercício do governo, vai esbarrar em questões bastante pragmáticas. Uma delas são as reações de parceiros externos, como a China”, diz Miriam. “Esse seria um dos elementos que puxam para a realidade.”

O outro elemento que deverá chamar o futuro governo à realidade é o que a professora chama de “custos internos”, caso do Mercosul.

A proposta da deputada Tereza Cristina (DEM-MS), da bancada ruralista no Congresso, contra a tarifa externa comum do Mercosul pode agradar produtores de uva e arroz brasileiros, mas está longe satisfazer as expectativas da indústria, principalmente de São Paulo e da Zona Franca de Manaus.

As declarações desencontradas dos ministros, do presidente e vice-presidente eleitos mostram que o futuro governo “é como uma colcha de retalhos”, diz Miriam. “O diplomata Ernesto Araújo (Relações Exteriores), alguns militares, o Moro, por exemplo, estão desconectados entre si e não têm uma linha partidária. Então, o governo dele vai ser uma enorme queda de braço.”

Não imediatamente, mas na medida em que a realidade se imponha, a política externa de Bolsonaro deve se dobrar à realidade e aproximar do tradicional. “Não será, creio eu, de enfrentamento com árabes, China e outros, porque isso provocará problemas sérios.” 

Enquanto Bolsonaro e futuros ministros dão declarações polêmicas e se desmentem mutuamente, os parceiros comerciais, vizinhos ou distantes, se movimentam. 

Nesta sexta-feira (23), a manchete do diário argentino El Clarín online destaca encontro entre o presidente do país, Mauricio Macri, e o embaixador da China no país, Yang Wanming. O aperto de mão serviu para confirmar o acordo entre Buenos Aires e Pequim, que deve ser assinado em 2 de dezembro, com um “plano de ação entre os dois países para os próximos cinco anos”, diz o jornal.

A China criticou duramente Bolsonaro no dia seguinte à eleição, em editorial no jornal estatal China Daily, sobre o propalado distanciamento entre o Brasil e o país asiático e o alinhamento com Washington, defendido na campanha por Bolsonaro, chamado de “Trump Tropical”pela publicação.

Os números: bons conselheiros

Está longe de ser sensato o Brasil criar problemas com a China, o maior parceiro comercial do país. Segundo o Ministério da Indústria e Comércio Exterior, em 2017 o Brasil exportou aos chineses 47,5 bilhões de dólares e importou 27,3 bilhões. O superávit é da ordem de 20,2 bilhões de dólares.

Com o Mercosul, o Brasil também acumula superávit importante em 2017, com exportações de U$ 22,6 bilhões e importações de U$ 11,9 bi (saldo positivo de U$ 11,7 bilhões).

E com a Argentina, a balança também é favorável, com vendas de U$ 17,6 bilhões e compras de U$ 9,4 bi. Saldo de U$ 8,2 bilhões em 2017.

Para Miriam Gomes Saraiva, é possível que o futuro chefe do Itamaraty, de início, faça mudanças, “até que a moderação e os contrapesos o puxem para a normalidade”. Se os ministros anteriores, José Serra e Aloysio Nunes, tiveram como marca mais conservadora a política contra a Venezuela e não foram muito além disso, Ernesto Araújo deve manter a agressividade com o país de Nicolás Maduro.

Mais do que isso, antes de começar, o governo já criou problemas concretos com Cuba, acabando com o Mais Médicos, e arestas ainda apenas verbais com os árabes, a China e o Mercosul. “É possível que crie também problemas mais velados com países europeus. França e Alemanha estão quietos, mas não devem estar gostando do que estão ouvindo”, diz a professora. 

Uma conjectura é que o Itamaraty pode reviver o que houve no governo Fernando Collor. O então presidente nomeou Francisco Rezek, indesejado pela diplomacia brasileira, que tinha um discurso de aproximação com os Estados Unidos e países do Norte. 

Insatisfeita, a diplomacia não se empenhou em aplicar as diretrizes. Já em abril de 1992, durante a crise, Collor o substituiu por Celso Lafer, muito mais respeitado no meio. E Lafer colocou a política em consonância com a diplomacia brasileira.

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