Estado Islâmico

Múltiplos interesses ocultos dificultam combate ao terror após ataque à França

Após anúncio da união franco-russa contra a grupo que atacou Paris, especialistas em relações internacionais avaliam que ainda é cedo para prever se Ocidente e Rússia atuarão concretamente em conjunto

Civil Defense Idlib/Fotos Públicas

Diante dos interesses, tragédia síria parece ser considerado problema menor para líderes mundiais

São Paulo – Embora o anúncio da união entre França e Rússia para o combate ao Estado Islâmico (EI), feito ontem (17), seja o principal fato geopolítico após os atentados a Paris, especialistas em Direito e Relações Internacionais mantêm cautela quanto aos desdobramentos e resultados concretos da coalizão franco-russa. “É cedo para avaliar o quanto esse alinhamento está no discurso, o quanto vai se manifestar na prática”, diz Bernardo Wahl, mestre em Relações Internacionais e professor de Política e Relações Internacionais e Ciência Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp).

Para Wahl – e para Rodrigo Gallo, cientista político e professor de Geopolítica da mesma escola –, tudo depende dos desdobramentos no teatro de guerra na Síria de Bashar Al-Assad, o presidente aliado da Rússia e renegado no Ocidente. Apesar de a aliança entre Rússia e França ser vista com desconfiança, e até a semana passada considerada impossível, o analista entende que ela pode não ser apenas retórica. “No pós-Guerra Fria, as alianças são o que se chama ‘geometria variável’: os países se aliam de acordo com temas específicos. Mesmo que haja divergência entre Europa-França e Rússia, eles podem se alinhar na questão do inimigo comum.”

Diante do ataque a Paris, por seu significado e impacto, a “questão Estado Islâmico” ganhou contornos de urgência e, por isso, a revisão de estratégias pode resultar de fato em ações concretas.

Para Gallo, nas próximas semanas, se houver novos ataques terroristas, é até possível que se crie uma “terceira via”, aglutinando forças aparentemente inconciliáveis, ocidentais e russas.

Antes dos atentados a Paris, em setembro, a França começou a bombardear posições do Estado Islâmico, em coalizão liderada pelos Estados Unidos, o que teria motivado a retaliação contra a França na última sexta-feira (13). Já os ataques aéreos americanos a bases do Estado Islâmico na Síria, muito divulgados no Ocidente, são considerados de escala muito pequena e meros jogos de cena por analistas. Por seu lado, a Rússia anunciou ataques ao Estado Islâmico há meses, apesar de várias análises ocidentais darem conta de que os alvos de Vladimir Putin na verdade são, ou eram, grupos de oposição ao presidente Assad.

Nesta semana, além do terror em Paris, a Rússia admitiu oficialmente que o avião russo da empresa Metrojet, que caiu no Sinai em 31 de outubro, foi derrubado por uma bomba de grupo ligado ao Estado Islâmico. O número de mortos, 224, é quase uma centena maior do que o resultante do ataque a Paris (129). Na quinta-feira (12), um duplo atentado reivindicado pelo grupo terrorista matou 44 pessoas em um reduto do Hezbollah, no sul de Beirute. São 397 mortos nos três ataques.

Diante desse cenário de terror, desconfiança e medo, o “11 de setembro de Paris”, como se denominou o ataque à capital da França, já pode em si mesmo ter desencadeado a “terceira via” de que fala Gallo. A aliança franco-russa pode ser a mostra disso. Mas tanto Rodrigo Gallo como Bernardo Wahl consideram qualquer conclusão prematura. Diante da escalada, intensidade e sucessão dos acontecimentos, os analistas “são atropelados pelos fatos às vezes enquanto preparam suas falas em palestras”, diz Wahl.

Em relação à união entre Rússia e França, Gallo afirma que, se a manutenção ou não de Assad no comando da Síria é o principal entrave entre Rússia e Estados Unidos, por outro lado uma solução só será visível a médio ou longo prazo. “Uma coisa é combater o grupo terrorista, outra coisa é o processo de reconstrução da Síria, após o fim do conflito.”

Iraque e Afeganistão

Se é que o conflito vai ter fim tão cedo. Gallo lembra que os desdobramentos da guerra e invasão do Iraque e do Afeganistão permanecem até hoje. Esse é um dos motivos pelo qual o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, tem relutado em promover ou participar de ações por terra contra o Estado Islâmico. “Existe em parte a desconfiança de que, independentemente de quem comandar ou participar da ação, ela pode desencadear um problema ainda maior.”

A fragmentação do Iraque após a invasão norte-americana é um “caldo de cultura” que ajudou o desenvolvimento do Estado Islâmico. No Afeganistão, os Estados Unidos derrubaram o regime do Talibã, mas o grupo “conseguiu manter uma resistência que está lá até hoje e desconfio que eventualmente possam reconquistar o poder”, avalia Wahl. “No Iraque, eles (EUA) também desmantelaram o governo, criou-se uma situação caótica e também daí surgiu o Estado islâmico, como a ‘Al Qaeda da Mesopotâmia’. Essas experiências não recomendam tropas em solo.”

Muitas pessoas não entendem como o grupo terrorista apareceu “de repente”. O problema é que não foi de repente. Muitos de seus fundadores eram membros das forças armadas do Iraque e do serviço de inteligência iraquiano. O dinheiro que o sustenta tem várias fontes, como petróleo no mercado negro, impostos que eles cobram, pilhagens, mas também de financiamentos. “Arábia Saudita, Qatar e Kwait já usaram o Estado Islâmico como uma espécie de ‘procurador’ para defender interesses sunitas no mundo muçulmano. Há muitos interesses conflitantes.” Para o analista, apesar de ser disseminado em células pelo mundo, o Estado Islâmico é um “proto-estado”, já que controla territórios (na Síria e no Iraque).

Além dos bombardeios aéreos e opções militares, consideram-se duas outras alternativas para combater os terroristas: corte das fontes de recursos, o que demandaria um esforço conjunto internacional altamente complexo, e um trabalho de inteligência, com infiltração nas células de planejamento para neutralizar os ataques antes de acontecerem. “Até se fala da união da comunidade de inteligência e aproximação da inteligência americana e russa, o que não necessariamente vai acontecer”, diz Bernardo Wahl.

Putin

O presidente russo tem sido “a pedra no meio do caminho” das análises simplistas desenvolvidas na mídia ocidental. Na segunda-feira, Putin afirmou sem meias-palavras que cerca de 40 países financiam o Estado Islâmico: “O financiamento, como sabemos, provém de 40 países, entre eles vários países do G20”, disse o líder em entrevista coletiva, na cidade de Anatólia, na Turquia. A fala do líder russo teve repercussão discreta na imprensa ocidental.

Putin confirmou que um dos principais meios de financiamento do terror é a compra de petróleo e que existem provas documentadas pelo sistema de espionagem da Rússia. “As imagens mostram as colunas de caminhões-tanques que se estendem por dezenas de quilômetros”, disse.

Para Bernardo Wahl, existe uma questão sem resposta que o incomoda: por que todo esse derramamento de sangue na Síria? O que está por trás da intransigência ocidental pela saída de Assad do poder na Síria? Ele dá uma pista: “Há uma versão segundo a qual há um interesse geopolítico, relativo a um gasoduto do Qatar, que passaria pela Síria, para chegar à Europa. Mas Bashar Al-Assad não quer deixar passar, porque, chegando na Europa, esse gasoduto quebraria o monopólio da Rússia no fornecimento de gás para a Europa.”

Além de toda a complexidade já mencionada, há um outro ator de grande importância que tem sido pouco citado nas análises: o Irã.

Uma das interpretações, segundo Wahl, é a seguinte: o Irã se aliou ao Iraque (de maioria xiita), à Rússia e ao Hezbollah (grupo fundamentalista islâmico xiita do Líbano) para desenvolver uma inteligência que operasse a partir do território iraquiano, no contexto de operações para proteger o regime de Assad. O Estado Islâmico (grupo sunita, inimigo histórico dos xiitas) é também inimigo comum dessas forças. “Mas, ao mesmo tempo, a existência do Estado Islâmico é importante para o Irã assumir a liderança dos xiitas no Oriente Médio. É uma coisa dúbia: ao mesmo tempo em que o Estado Islâmico é um inimigo, ele é considerado um elemento favorável à consolidação da liderança do Irã na região.”

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